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Judith Godrèche não pretendia relançar o movimento MeToo na indústria cinematográfica da França.
Ela voltou a Paris de Los Angeles em 2022 para trabalhar em “Ícone do Cinema Francês”, uma série de TV que ela escreveu, dirigiu e estrelou —uma sátira sobre sua carreira de atriz que também relata como, aos 14 anos, entrou em um relacionamento abusivo com um diretor de cinema 25 anos mais velho.
Então, uma semana após a exibição do programa, no final de dezembro, uma mensagem de um telespectador a alertou sobre um documentário de 2011 que a fez vomitar e começar a tremer como se estivesse “nua na neve”.
Lá estava o mesmo diretor de cinema, admitindo que o relacionamento deles tinha sido uma “transgressão”, mas argumentando que “fazer filmes é uma espécie de cobertura” para formas de “tráfico ilícito”.
Ela foi à unidade policial especializada em crimes contra crianças —sua sala de espera estava cheia de brinquedos e um urso de pelúcia gigante, ela lembra— para registrar uma denúncia de estupro de menor.
“Lá estava eu”, disse Godrèche, agora com 52 anos, “no lugar certo, onde tenho esperado estar desde os 14 anos”.
Desde então, Godrèche tem feito uma campanha para expor o abuso de crianças e mulheres que ela acredita estar enraizado na indústria cinematográfica francesa. Mal passou uma semana sem que ela aparecesse na televisão e no rádio, em revistas e jornais, e até mesmo diante do Parlamento francês, onde exigiu uma investigação sobre a violência sexual na indústria e medidas de proteção para crianças.
Em resposta, muitas outras mulheres e homens falaram publicamente para dizer que também foram vitimizados na reverenciada indústria cinematográfica do país, onde alguns diretores há muito tempo são celebrados por transgredir normas sociais e morais em nome de sua arte.
Enquanto o MeToo rapidamente derrubou vários homens poderosos em Hollywood depois que o movimento começou em 2017, seu impacto na França tem sido mais lento. Ele causou algumas pequenas mudanças na indústria, mas também enfrentou forte resistência.
Desta vez, muitas atrizes e especialistas dizem que sentem uma mudança na percepção.
“Algo muito profundo e muito luminoso está acontecendo”, disse a atriz Anouk Grinberg. “Pessoas que defendem vítimas não são mais consideradas inimigas e hienas que caçam homens.”
Uma associação de atrizes, ADA, foi formada em 2021 para pressionar por mudanças na indústria, incluindo a presença de coordenadores de intimidade —profissionais que ajudam atores e equipes de filmagem em cenas de sexo— no set como prática padrão. Os membros dizem que foram inundados por candidatos para se juntar à associação, bem como por vítimas oferecendo testemunhos.
“A diferença agora”, disse Clémentine Poidatz, membro da ADA, “é que as pessoas estão ouvindo”.
Sinais de mudanças de atitude são difíceis de medir. Mas Godrèche, que foi uma estrela de cinema na França antes de se mudar para os Estados Unidos há uma década, recebeu uma recepção emocional de audiências poderosas, incluindo membros de comissões tanto do Senado quanto da Assembleia Nacional francesa.
Em uma entrevista, Godrèche, que foi uma das que falaram nos Estados Unidos sobre o produtor de cinema Harvey Weinstein, disse: “Não me vejo como a messias. Eu não inventei o MeToo. Havia mulheres que falavam aqui antes de mim.” Ela entende o quão difícil é impulsionar mudanças culturais fundamentais, acrescentou.
“Você precisa bater na porta, e bater na porta, e bater na porta”, disse ela. “Você não precisa de um piano. Você não precisa de uma guitarra. Você precisa de uma banda inteira —uma banda de metais.”
Essa batida já trouxe alguns momentos de acerto de contas e algumas mudanças estruturais. O governo francês agora oferece incentivos financeiros para filmes recrutarem mais talentos femininos e exige que os produtores sejam treinados na prevenção da violência sexual antes de receberem certos subsídios.
Mas também houve forte resistência. O movimento MeToo muitas vezes foi descartado como um avanço de costumes puritanos americanos em uma parte essencial da identidade intelectual e cultural da França.
As particularidades do cinema francês também o tornam avesso à mudança. A produção cinematográfica na França é frequentemente vista como uma forma de arte em primeiro lugar, não como um negócio, e os sets raramente são tratados como qualquer outro local de trabalho.
Enquanto a maioria aplaude um sistema de financiamento redistributivo que protege filmes independentes da pressão de bilheteria, críticos dizem que isso também torna alguns diretores imunes à introspecção e eleva sua visão artística acima de tudo —incluindo, ocasionalmente, a lei.
Um dos homens mais proeminentes a enfrentar acusações na França é a estrela de cinema Gérard Depardieu. Mais de uma dúzia de mulheres disseram que ele as assediou sexualmente ou abusou delas. Em 2021, ele foi acusado de estuprar e agredir sexualmente uma jovem atriz aspirante, Charlotte Arnould. Depardieu negou categoricamente qualquer irregularidade e não foi condenado. A investigação está em andamento.
Em dezembro, pouco antes de Godrèche começar a falar, uma investigação televisiva mostrou imagens de Depardieu fazendo comentários grosseiros e sexistas durante uma viagem à Coreia do Norte em 2018.
Os vídeos causaram indignação, mas o presidente Emmanuel Macron reagiu, condenando o que chamou de “caça às bruxas” contra o ator.
Arnould disse acreditar que uma mudança estava ocorrendo porque mais mulheres estavam se manifestando. No entanto, ela acrescentou que não estava otimista quanto aos resultados.
“Os homens ainda não têm medo o suficiente. Para que isso aconteça, seria necessário uma reversão total do sistema e um despertar coletivo”, disse ela em um email.
Em 2020, o meio literário da França foi abalado pela publicação de “Consentimento”, um livro de Vanessa Springora que detalhava o relacionamento tortuoso que ela teve aos 14 anos com o celebrado escritor Gabriel Matzneff, na época com 49 anos, sob o olhar complacente da elite cultural do país. Muitas de suas obras publicadas detalhavam suas investidas sexuais com meninas e meninos em seus primeiros anos da adolescência ou mais jovens.
Diante dessa atitude historicamente tolerante, a França fortaleceu sua proibição de contato sexual com menores de 15 anos, reclassificando-o como estupro quando o adulto tem mais de cinco anos de diferença.
Godrèche disse que via sua história como a versão cinematográfica de “Consentimento”.
Ela começou no cinema quando criança e conseguiu um papel aos 14 anos em um filme do diretor Benoît Jacquot. Seu relacionamento se desenrolou à vista de todos. Eles compraram um apartamento juntos quando ela tinha 15 anos e ele 40.
Ela também acusou Jacques Doillon, outro diretor, de agredi-la sexualmente duas vezes —uma delas quando ela estava estrelando seu filme “A Garota de 15 Anos” sobre um pai que se apaixona pela namorada de seu filho. Doillon também interpretou o pai e exigiu 45 tomadas para uma cena de sexo com ela, ela disse à rádio francesa.
Por meio de seus advogados, ambos os homens negaram as acusações e se recusaram a comentar mais.
Doillon está processando Godrèche por difamação por comentários que ela fez no Instagram acusando-o de ter relações sexuais com crianças.
Em uma entrevista ao jornal Le Monde, Jacquot reconheceu seu relacionamento com Godrèche —e muitas outras jovens que ele considerava suas musas— mas negou ter tido relações sexuais com ela antes dos 15 anos. Ele também contestou ter sido violento ou coercitivo com ela.
Foi Jacquot, falando naquele documentário de 2011, que iniciou a campanha de Godrèche. Entre as demandas específicas que Godrèche fez está uma investigação parlamentar sobre violência sexual e riscos para crianças na indústria cinematográfica. Ela ecoou o apelo da ADA por coordenadores de intimidade, especialmente quando crianças estão envolvidas.
Mas ela considera que o acerto de contas atual na França é muito maior.
“O cinema francês representa a sociedade francesa”, disse ela. “Os diretores são pais e tios e melhores amigos da família e avôs. E é dentro dessas famílias que dizemos às crianças e mulheres e jovens e homens para não falar.”
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Fonte: Uol