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Tudo é misterioso em “O Navio da Morte”.
A identidade do autor B. Traven é misteriosa. Seus livros saíam primeiro em alemão e depois em inglês: em algumas ocasiões, dizia ter traduzido ele mesmo ao inglês; em outras, que o inglês é que era a língua original.
Seu romance mais conhecido, “O Tesouro de Sierra Madre”, de 1927, foi adaptado por Hollywood em uma superprodução estrelada por Humphrey Bogart. Várias de suas obras se passam no México e abordam temas relacionados à Revolução Mexicana.
Era o autor alemão? Americano? Mexicano? A teoria mais aceita é que teria sido um anarquista alemão que fugiu para o México depois da Primeira Guerra. Mas nada é seguro.
Tendo em vista a quantidade de livros investigando a identidade de B. Traven, ficaram faltando algumas páginas apresentando esse mistério fascinante ao público brasileiro. Quem não gosta de uma fofoca de autoria literária?
O manuscrito original deste livro também é misterioso: ele saiu primeiro em alemão em 1926 e, oito anos depois, em inglês, em versão expandida traduzida pelo próprio Traven. A maioria das edições internacionais, inclusive uma brasileira da década de 1960, traduzem essa anglófona. A atual brasileira, na contramão da tendência, foi feita a partir da primeira edição alemã.
Os acréscimos à edição de 1934, entretanto, contêm alguns dos melhores trechos da obra. Por que privar o público brasileiro deles? Será que os editores presumem que não foram escritos pelo próprio autor? É possível. De novo, nada é seguro.
O problema é nem a multiplicidade textual nem a justificativa pela escolha da edição alemã terem sido comunicados às leitoras brasileiras.
Esses são os únicos senões de uma edição quase perfeita, primorosa e belíssima, da capa à tipografia. O posfácio, escrito por Alcir Pécora, professor da Unicamp e coordenador da Coleção Quimera, também é excelente e vai fundo no texto da obra, explorando tanto suas alusões literárias quanto seu contexto político.
O protagonista Gales é um pícaro à moda antiga, na tradição do Lazarilho de Tormes e do nosso Sargento de Milícias, malandro e sofrido, irônico e ácido, narrando em suas próprias palavras a luta para sobreviver em um mundo hostil. Em “O Navio da Morte”, o pícaro é marinheiro e circula no mesmo cenário da melhor literatura de Herman Melville ou Joseph Conrad.
Mas não estamos mais no século dos baleeiros à vela. Se toda grande obra é sempre uma crítica à literatura anterior, “O Navio da Morte” é a resposta brutal do século 20 à literatura marítima do 19. Sim, nosso conhecido pícaro está em um familiar navio conradiano, mas dessa vez o roteiro parece escrito por Franz Kafka e os diálogos, por Samuel Beckett, se ambos fossem militantes anarquistas.
“O Navio da Morte” merecia ser mais conhecido. Na década de 1920, porém, o cânone não aceitava facilmente obras tão esquerdistas e ele se tornou apenas um “clássico do anarquismo”. Hoje, na década de 2020, o mundo mudou, para o bem e para o mal.
Por um lado, nossa literatura está cada vez mais avessa a sutilezas: livros sobre raça precisam afirmar a toda página que o “racismo é ruim” e desautorizar as personagens racistas (“olha, ela só está falando isso porque é a vilã, viu?”) ou a autora se arrisca a tomar um cancelamento apedrejante.
Por outro, quase clássicos como “O Navio da Morte”, nunca canonizados por serem excessivamente panfletários, talvez consigam cair no gosto de um público mais amplo.
Alguns livros envelhecem bem, outros mal: este não envelheceu nada. Cem anos depois, cada um de seus episódios grotescos, de suas situações absurdas, continua acontecendo igual ou pior. Não existem sutilezas em “O Navio da Morte”: o capital e os capitalistas, a burocracia e seus funcionários, o Estado e seus defensores são sempre os vilões.
A grande literatura raramente é tão panfletária, mas “O Navio da Morte” consegue cavar uma exceção.
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Fonte: Uol