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“A gente não é ensinado; a gente cresce vendo avó, mãe e pai fazendo e faz também.”
É assim, passando para os outros o conhecimento que vivenciou em casa, que a culinarista Angélica Souza, 48, mantém viva uma das principais tradições caiçaras. Natural de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, ela é uma das referências quando se fala em peixe seco no varal.
O processo, como sugere o nome, consiste em secar o peixe num varal, sob a luz do sol, após a salga sem conservantes –o tempo de cura varia de acordo com a espessura. À noite, recolhe-se tudo para evitar o sereno. É um trabalho simples e ancestral, que nasceu quando não havia nenhuma forma de refrigerar o alimento.
“Toda família tradicional, centenária, sabe salgar peixe. Eu salgava para consumo próprio e para dar de presente. Até que um dia tirei uma foto, coloquei na internet, e as pessoas começaram a me pedir para comprar”, conta Angélica.
epois de pronto, o peixe seco pode ser guardado, e na hora de cozinhar faz-se a dessalga, assim como é feito com bacalhau. O inesperado é que tainha, manjuba, carapau, lula e até mexilhões podem ser curados. “Eu tenho quatro filhos e crio todos com esse trabalho”, afirma a culinarista, que atualmente dá cursos sobre comida caiçara e publicou um livro de receitas com peixe seco.
A mesma comida caiçara que criou os filhos de Angélica guia a vida de Eudes Assis, 47, e de seu aclamado restaurante Taioba, na praia de Camburi. “A cozinha é uma ferramenta de transformação social”, diz o chef, que comanda paralelamente o Buscapé, projeto que assiste com aulas de gastronomia e mais atividades crianças em situação de vulnerabilidade.
“A região sempre teve bons restaurantes, mas que se rotulavam como contemporâneos. Usavam salmão; nunca carapau, sororoca. Falar em comida caiçara era falar de um prato não refinado”, afirma Eudeus, que na contramão da concorrência resolveu montar um cardápio focado em peixes, pancs (plantas alimentícias não convencionais) e receitas caiçaras.
O bolinho de taioba, que dá nome ao local, é uma das estrelas. Outro tradicional do cardápio é o azul-marinho, um filé de peixe ensopado e cozido com banana verde na panela de ferro –é a reação da banana na panela que dá ao prato o tom azulado.
Durante a tragédia das chuvas que assolaram a cidade, em fevereiro de 2023, Eudes tomou a frente da produção de marmitas para os que perderam suas casas. Cozinhou cerca de 80 mil enquanto seu restaurante, também atingido, permanecia fechado. “Você vê o lugar que tanto ama dilacerado. Casas com água no telhado, carros boiando, cenário de guerra. O povo caiçara é muito resiliente.”
É a resiliência que faz com que empresários da gastronomia sigam investindo em São Sebastião, mesmo após a chuva e uma pandemia que deixam reflexos até agora. Rogilson Moraes Costa, 54, toca o restaurante Canoa, próximo ao centro histórico. Herdou a casa do pai, que por anos também teve um bar 24 horas na cidade.
Dos destaques de seu cardápio, faz questão de sugerir o peixe à quebra-mar, uma receita local quinquagenária que é uma espécie de lasanha feita com pescado, berinjela e queijo. “O comércio sentiu muito a tragédia”, diz o dono do Canoa. “Mas seguimos e queremos mostrar para o turista toda a parte histórica e gastronômica de nossa cidade, coisas que não têm preço.”
Assim, partilhando conhecimento, histórias e suas receitas, cozinheiros sebastianenses mantêm a tradição ancestral pulsando. Jogam luz à gastronomia local e geram renda para a comunidade. Afinal, como diz Angélica Souza, a gastronomia caiçara “é uma cultura viva”. O resgate é para as novas gerações.
A jornalista viajou a convite da secretaria de Turismo de São Sebastião
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Fonte: Folha de São Paulo