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O ano era 1964, início da filme ditadura militar no Brasil. Helena Solberg havia queimado as trezentas páginas de uma novela escrita na juventude e desistido de ser escritora. Estava casada e tinha um filho pequeno, mas não trabalhava nem se identificava com a vida de dona de casa.
Foi então que começou a entrevistar uma série de mulheres sobre casamento, virgindade, sexo, felicidade, amor. As entrevistadas eram suas contemporâneas, pertenciam às classes média e alta do Rio de Janeiro, tinham entre 19 e 27 anos e, para tratar de temas tão íntimos, tabus mesmo, preferiam conversar a portas fechadas, não aceitando serem filmadas.
Nascia assim “A Entrevista”, curta lançado em 1966. Glória Solberg, então cunhada da cineasta, foi a única que topou mostrar o rosto, tornando-se protagonista. A ousadia e a originalidade do curta foram reconhecidas nos festivais internacionais por onde o filme passou.
Meio século depois, Helena Solberg recebe uma mensagem da jornalista italiana Beatrice Andreose, uma lata com o curta de 1966 tinha sido encontrada no armário de uma escola da comuna de Este, em Pádua, na Itália. “A Entrevista” havia sido exibido no Festival dei Popoli e recebido o Premio dei Colli, destinado a documentários.
A película, surpreendentemente bem preservada, fala da condição da mulher nos anos 1960, e Andreose pede que a cineasta lhe descreva a situação atual. Foi o pretexto para iniciar a realização de “Um Filme para Beatrice”, documentário de longa-metragem que estreia agora no festival É Tudo Verdade.
Duas narrativas estruturam o novo filme. Há, de um lado, a reflexão sobre questões que ocupam as mulheres latino-americanas nos últimos cinquenta anos: dupla jornada de trabalho, virgindade, violência sexual, liberdade. Do outro lado está a trajetória da própria cineasta, vista através de imagens de alguns de seus dezoito filmes. As duas narrativas são na verdade inseparáveis, já que a condição da mulher se revela uma preocupação constante na obra de Helena Solberg.
A entrevista à Folha, feita por videoconferência, começa com uma questão sobre a coerência de seu cinema. O tema não chega a ser tabu, mas incomoda a entrevistada. Ela nunca pretendeu fazer uma autobiografia e, em “Um Filme para Beatrice”, resistiu antes de aceitar colocar-se em cena.
“É difícil olhar a própria obra e analisá-la”, diz ela. “Com esse filme, eu estava preocupada em chegar ao presente, em como estão as mulheres agora”, diz. E como estamos? “A gente dá um passo à frente e dois para trás, as coisas não se resolvem. Isso porque a mulher quer algo muito ambicioso, uma mudança que atinge a estrutura de toda a sociedade.”
Se Helena Solberg costuma ser identificada como rara ou única mulher do Cinema Novo, não é assim que ela se apresenta no filme. “Pertenço à geração do Cinema Novo e era muito próxima de alguns cineastas”, diz.
De fato, Glauber Rocha ajudou-a a conseguir financiamento para “A Entrevista”, Mário Carneiro assina a direção de fotografia do filme e Joaquim Pedro de Andrade deixou que ela acompanhasse as filmagens de “O Padre e a Moça” (1966), uma escola de cinema intensiva. Isso, porém, não a impede de reconhecer o machismo que existia. “Era um clube do bolinha? Era. E eles eram machistas, sim. Mas isso estava na sociedade como um todo”, afirma.
A cineasta tinha pouco mais de 30 anos quando se muda para Washington, casada e com dois filhos, de 9 e 7 anos. É um choque. O movimento feminista enchia as ruas e ela tentava pensar em estratégias para continuar a fazer cinema no novo país, com poucos contatos e uma vida mais doméstica.
Colocou um anúncio num quadro de avisos em busca de voluntárias para pesquisar feminismo e o coletivo que se formou deu origem ao média “The Emerging Woman” (1975), dedicado “às mulheres dos últimos 200 anos, cuja luta tornou possível o surgimento da nova mulher”. Não parou de filmar, sobretudo mulheres.
O feminismo de Helena Solberg não segue uma cartilha estrita e é, como ela diz, “muito amplo”, pois “envolve a sociedade como um todo, atingindo homens e mulheres”. Pode surpreender o fato de ela incluir entrevistados homens ou dedicar uma sequência de “Um Filme para Beatrice” a David Meyer, a quem apresenta como “companheiro, marido e amigo”.
Meyer e Solberg se conheceram durante a realização de “Nicarágua Hoje” (1982). Ele, então jornalista, estava de partida para a Nicarágua e fez as entrevistas que faltavam para completar o documentário. De lá para cá, ele, que também é cineasta, colaborou em todos os projetos de Solberg.
Os dois atuaram juntos em “Carmen Miranda: Bananas is my Business”, premiado nos festivais de Brasília, Havana e Chicago, entre outros. Considerado uma “biografia afetiva”, o filme sobre a cantora e atriz luso-brasileira traz à tona outra questão cara a Solberg, o convívio com o olhar estrangeiro que exotiza as latino-americanas nos Estados Unidos.
Depois de anos de um reconhecimento rarefeito por parte da crítica e da historiografia do cinema no Brasil, a volta de Solberg ao país coincide a um momento de maior atenção sobre sua obra, que inclui o livro “Helena Solberg: Do Cinema Novo ao documentário contemporâneo”, publicado por Mariana Tavares em 2014, e uma retrospectiva integral realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil.
No balanço geral que “Um Filme para Beatrice” propõe sobre sua trajetória e sobre a condição da mulher, não há espaço para lamentos. “Nunca me senti ausente nem injustiçada. O que eu queria era fazer cinema e saber mais sobre quem somos”, diz. Esse é realmente o tom do documentário que chega às telas.
Aos 85 anos, a cineasta convoca interlocutores como a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, a crítica feminista Heloísa Teixeira —que antes usava o sobrenome do marido, Buarque de Hollanda— e o professor Guilherme Pereira, mais conhecido como Rita von Hunty —no filme, por um pedido de Solberg, é principalmente Guilherme que ouvimos. Nas conversas, comemoram-se as possibilidades dos tempos atuais, menos limitadores em relação à sexualidade e às expectativas.
No início de nossa entrevista, quis pedir-lhe que refletisse sobre a própria obra, que olhasse para o passado, e o incômodo surgiu. Nada menos sintonizado com os interesses de Solberg, que vive com os dois pés no presente e um olhar curioso sobre o futuro.
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Fonte: Uol