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Negra, a palavra e a pessoa, ainda incomoda. No dia 15 de março de 2018, lembro-me, infelizmente como se ontem fosse, das marchas que, unidas na principal avenida de São Paulo —a Paulista—, formavam uma só via arterial. Pulsávamos no ritmo das batidas das solas sobre o desanimador asfalto. O silêncio imperava. Podíamos gritar, cantar um lamento, sussurrar notas sutis de uma incredulidade dissonante, mas era silêncio e só. Por que a mataram? Negra, a palavra e a pessoa, havia incomodado demais, sabíamos de prontidão.
Quando a notícia sobre o assassinato de Marielle Franco ganhou destaque no noticiário, pouco me recordo dos veículos que a descreveram primeiramente como pessoa negra a partir da palavra. Enfatizou-se seu cargo de vereadora e o partido ao qual pertencia. Por outro lado —aquele que sentiu o impacto da notícia na pele, no sangue e no autorretrato—, o baque da imagem trouxe não só a marca, mas também a origem da vítima.
Quem não conhecia Marielle pelo nome ou mandato, ao vê-la estampada nas manchetes a reconheceu negra e, com ela, tudo que lhe atravessava. Uma mulher negra foi assassinada de maneira cruel e evidentemente planejada. Uma das tantas que habitam nossas casas, lembranças e histórias. Vereadora, sim, importante lembrar sempre, mas antes negra, marcada pela palavra que revela a origem da pessoa. Origem africana. Sim, também importante lembrar sempre.
Durante as manifestações em protesto contra o crime, o lamento coletivo do povo negro mais uma vez velava uma irmã vítima do ódio racial misturado a outras motivações perversas —como as que, nesses últimos dias, foram investigadas e tornadas públicas. Sem qualquer pudor, movimentos ditos “liberais” iniciaram um trabalho de difamação para tentar destruir a negra, a palavra e a pessoa, enquanto símbolo de resistência contra a corrupção, racismo, feminicídio e outras importantes lutas sociais. Incomodou muito a negra, tanto a palavra quanto a pessoa.
Evitar o termo passava (e ainda passa) a falsa sensação de que não há, nunca, um fator racista na violência de brancos contra negros, quando estes são exterminados apenas por serem quem são e como são. Negra, a palavra e pessoa, deve ser evitada. É o que parece. Caso contrário, corre-se o risco de ter que usá-la no plural e, mais do que incomodar, acomodar-se-ão essas gentes negras todas ao direito de se aquilombar e alargar o significado de raça para além das reducionistas e falidas noções eurocentradas, cuja elaboração objetivou desumanizar.
Negra, a palavra e a pessoa, hoje diz muito, em vários tons, timbres, formatos, mas sempre negra, na marca e na origem. Por isso ainda incomoda e é evitada. Quando não opacada.
A caminhada seguiu pesada pela quinta-feira, 18 de março de 2018, na avenida Paulista. Negras eram as várias pessoas que incomodaram boa parte da cidade, do estado e do país. Marielle foi atacada nos anos seguintes, até nos dias de hoje, mas também inevitável e inspiradora se tornou. Suas fotos sorrindo pelas comunidades do Rio de Janeiro também são marcas importantes que retratam a origem. Lembram à negra gente de que enquanto viva consegue ir além da morte, desgraça, violência e pobreza. Por isso incomoda um tanto. Ao significar mais do que alguém indigna de humanidade, negra, a palavra e a pessoa, vira alvo dos incomodados que não se mutam.
Caminhei calado o trajeto todo. Negra, a palavra e a pessoa Marielle Franco, seguia-me em pensamento. O incômodo era outro. O de não conseguir falar e ver, vivas, palavra e pessoa.
Seis anos se passaram desde o seu assassinato. As investigações caminham para etapas conclusivas. Entre os desconfortos que as verdades tendem a trazer para a família, presente está Marielle, mulher negra, agora —e sempre— como palavra viva.
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Fonte: Uol