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Uma comitiva liderada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por ONGs que integram a Rede Cerrado passou quase duas semanas viajando pela Europa, tentando convencer a opinião pública e as autoridades que a lei antidesmatamento da União Europeia é frouxa demais em relação ao Brasil.
A missão defende um boicote ao próprio país, conclamando os europeus a endurecerem as exigências e a incluir o Cerrado entre os biomas dos quais não se aceitarão produtos oriundos da conversão de uso do solo, feita de forma legal ou ilegal. A Regulação contra o Desmatamento da União Europeia (EUDR), cuja aplicação deve começar oficialmente em dezembro deste ano, proíbe a importação de commodities provenientes de áreas de floresta desmatadas após 31 de dezembro de 2020.
Para os ambientalistas, os europeus cometem um erro ao aplicar as restrições apenas ao bioma amazônico. “Eles têm foco em floresta, porque adotaram o conceito de floresta da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura], que está mais centralizado na Amazônia brasileira, excluindo outros biomas brasileiros. E nós queremos que seja incluído o Cerrado neste momento em que a regulação está na primeira revisão”, disse à Agência Brasil Dinamam Tuxá, advogado e coordenador executivo da Apib.
Dúvida é sobre quanto do Cerrado deve ficar intocado
A Gazeta do Povo ouviu especialistas no bioma que apontam que, de fato, existem serviços ecossistêmicos insubstituíveis que a vegetação natural presta à própria agricultura e ao equilíbrio do Cerrado. O que não há, necessariamente, é concordância sobre qual o percentual ideal de área a ser preservada – se aquela já prevista pelo Código Florestal (áreas de preservação permanente mais a Reserva Legal de 20% a 35% do tamanho da propriedade), ou se índices superiores a esses.
A campanha da Rede Cerrado e da Apib na Europa, de qualquer maneira, ignora e afronta a legislação brasileira ao propor uma moratória total para novas conversões do uso do solo, enquanto a lei exige das propriedades privadas percentuais fixos de cobertura nativa no Cerrado.
Para o ex-secretário de Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente na gestão Bolsonaro, Eduardo Lunardelli Novaes, os brasileiros em turnê pela Europa participam de um processo maior, de tirar a competitividade do Brasil, e acabam se alinhando diretamente com interesse dos agricultores europeus.
“A nossa legislação é a mais rigorosa do planeta, quase não existe uma segunda colocada. Basta a gente seguir a lei. A gente não deve, como país, como nação, pelo futuro de nossos filhos, jamais ir um milímetro além do que está em nossa lei”, argumenta.
Fórum Econômico Mundial defende veto à conversão do uso do solo
Simultaneamente à campanha de brasileiros para boicotar a expansão agrícola no Cerrado, o Fórum Econômico Mundial divulgou um documento intitulado “Cerrado: produção e proteção” (disponível em inglês). O estudo defende que o Brasil poderia agregar divisas de até US$ 72 bilhões por ano migrando para uma economia verde, que interrompa a conversão de novas áreas do Cerrado à agricultura. Atualmente, metade do bioma permanece intocado.
No prefácio do relatório, o ex-ministro da Fazenda do governo Dilma Rousseff (PT), Joaquim Levy, apelou para que líderes e decisores deem “séria consideração” às propostas delineadas no documento. E parabenizou o Fórum Econômico Mundial pela publicação “deste excelente relatório sobre a promoção de um caminho de desenvolvimento sustentável para o Cerrado no ano em que o Brasil sedia a Cúpula do G20 e se prepara para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP25) em 2025”.
Em determinado ponto, o documento do Fórum Econômico é direto ao defender o fortalecimento de mecanismos como a lei antidesmatamento europeia “para desencorajar a conversão do uso do solo no bioma brasileiro”.
Produtores no Cerrado detêm 30 milhões de hectares excedentes de Reserva Legal
Ao todo, segundo o estudo, dos 200 milhões de hectares do Cerrado, 80 milhões de hectares estão preservados dentro das propriedades rurais. O “problema” é que pela lei brasileira cerca de 30 milhões de hectares são excedentes de áreas de Reserva Legal, e poderiam, legalmente, ser convertidas à agricultura.
Na visão do Fórum, o Brasil deveria focar a expansão agrícola em outros 30 milhões de hectares, de pastagens degradadas no Cerrado, se tornando um exemplo de agricultura regenerativa para o mundo. Nessa linha, o atual governo tem um plano para recuperar 40 milhões de hectares de pastagens degradadas em dez anos, e busca US$ 120 bilhões no exterior para financiar a iniciativa.
O documento do Fórum Econômico afirma ser urgente encontrar
mecanismos que incentivem os produtores a conservar as áreas de Cerrado
excedentes à Reserva Legal, e isso passa por novas políticas e compromissos
ambientais, incentivos à não conversão, reforço na fiscalização e criação de
valor para áreas preservadas ou restauradas.
“Além de políticas restritivas e compromissos voluntários, o reforço positivo através de incentivos financeiros e soluções financeiras combinadas desempenha um papel fundamental para tornar a preservação da vegetação nativa uma oportunidade ambiental e de negócio mais atraente. O papel das instituições multilaterais no fornecimento de recursos de baixo custo em grande escala será provavelmente um fator crucial para o sucesso de restringir o acesso ao mercado de produtos menos sustentáveis”, diz o documento.
“Já existem vários apoios financeiros, compliance e pacotes de estímulo do governo brasileiro, associações empresariais e filantrópicas que dão suporte a atividades agrícolas alinhadas com a proteção da vegetação nativa, com a restauração das áreas degradadas e outras medidas para acelerar a implementação de uma economia mais sustentável”, prossegue o texto.
Lunardelli vê “processo para tirar competitividade do Brasil”
A divulgação do relatório do Fórum Econômico Mundial simultaneamente à presença da comitiva brasileira na Europa pregando uma “moratória do Cerrado” não seria mera coincidência.
“Desde a Rio-92 tivemos uma quantidade enorme de estatização de terras. Muitas sequer forma pagas; foram, na prática, expropriadas. Estamos falando de unidades de conservação, de terras indígenas, de reforma agrária. Esse processo de estatização de terras tem apoio desses mesmos grupos de interesse articulados nos eventos da última semana. Esse é o processo. É o processo de tirar competitividade do Brasil. Nestes interesses estão ONGs, instituições financeiras e os grandes oligopólios representados no Fórum Econômico Mundial. E temos, também, o casamento de interesse com os agricultores europeus”, afirma Lunardelli.
Pressões externas à parte, para o professor da Universidade
Federal de Viçosa (UFV), coordenador do Grupo de Pesquisa em Interação
Atmosfera-Bioesfera da mesma universidade, e membro do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, Marcos
Heil Costa, o país faria bem em preservar o que resta do Cerrado. Ele aponta
que as reservas indígenas e as unidades de conservação não cobrem área
expressiva no bioma e que as exigências de 20% de Reserva Legal (para os campos
gerais) e de 35% para o Cerrado amazônico também “são, percentualmente, pouca
coisa”.
“O Cerrado como vegetação presta vários serviços ecossistêmicos que estão sendo perdidos à medida em que é desmatado. O ideal seria interromper o desmatamento e adotar projetos diversos de intensificação sustentável e medidas de conservação de solo e água, como as preconizadas pelo Plano ABC+”, afirma Costa.
Pesquisador aponta serviços ecossistêmicos do Cerrado
Dentre os serviços ecossistêmicos que estariam sendo perdidos
com a conversão do uso do solo no Cerrado, Costa destaca a “injeção de vapor d’água
na atmosfera”.
“Durante a estação seca, o Cerrado evapotranspira algo da ordem de 1 mm/dia. Em contrapartida, uma terra destinada a culturas agrícolas, no final da estação seca, evapotranspira zero, pois não há cultura no solo no final da estação seca. Essa diferença é fundamental para prover umidade para a atmosfera antecipar o início da estação chuvosa”, afirma o pesquisador.
“Tem sido verificado que a estação chuvosa começa algumas semanas depois em áreas desmatadas do que em áreas ainda cobertas por vegetação nativa. Isso tem reflexos na possibilidade de fazer duas safras de sequeiro no Cerrado, na geração de energia elétrica (principalmente em barragens a fio d’água) e na suscetibilidade do próprio Cerrado a queimadas”, diz.
Outro serviço sistêmico prestado pela vegetação nativa do Cerrado seria o “controle da desertificação”, ao evitar a erosão hídrica e eólica. Em outro aspecto, de prevenção de enchentes, Costa afirma que “a presença do Cerrado aumenta a infiltração de água no solo, reduz o escoamento superficial rápido e reduz também o transporte de sedimentos, que causa assoreamento dos rios e piora ainda mais as enchentes”.
Supressão da cobertura nativa tem efeitos além da agricultura, diz pesquisador
“O desmatamento do Cerrado causa efeitos que afetam dezenas de milhões de brasileiros. Um agricultor que está desmatando a sua terra pode não estar sentindo os efeitos diretos do desmatamento, mas os demais ao seu redor (na direção do vento, na direção do rio) estão sentindo esse efeito. E o serviço gratuito que o Cerrado deixa de fazer acaba sendo pago pela sociedade de maneira geral, de acordo com a maneira com que cada um é afetado”, afirma Costa.
“Por isso eu acho que deveríamos interromper o desmatamento do Cerrado, preservando pelo menos metade do bioma, e intensificar de forma sustentável o restante, para produzir mais sem desmatar mais e sem perder mais serviços ecossistêmicos”, recomenda o pesquisador.
Quanto aos produtores que possuam excedente de Reserva Legal
nas propriedades, Costa entende que, para não haver prejuízo, seria papel do
governo criar condições favoráveis à intensificação das atividades de maneira
sustentável, aumentando a produção sem desmatar.
“Acho que a melhor alternativa não é proibição ou restrição, mas incentivos e investimentos por parte do governo. Existem regiões do Cerrado relativamente carentes de infraestrutura, em que os agricultores querem instalar ou expandir a irrigação, mas são limitados pelas linhas de transmissão disponíveis, ou pela potência das linhas de transmissão disponíveis”, diz.
“É um caso típico em que o governo pode fazer um acordo com os fazendeiros, que se comprometeriam a não desmatar mais em troca do investimento em linha de transmissão adequada para que todos pudessem instalar/expandir a sua irrigação, respeitados, é claro, a disponibilidade de recursos hídricos superficiais e subterrâneos e outros critérios ambientais. Com esse investimento por parte do governo, a terra passaria a ser mais valorizada”, exemplifica.
Professor da Unesp: zerar conversão do solo é jogo dos outros
Outro estudioso do solo e do bioma Cerrado, Ciro Rosolem,
professor da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), entende que a fatia já reservada à preservação pela
legislação brasileira é suficiente para assegurar um equilíbrio entre a
produção e a conservação.
“Uma agricultura bem feita no Cerrado aumenta o teor de matéria orgânica, melhora a saúde do solo. Vai diminuir um pouco a biodiversidade de microorganismos, mas ainda teremos 35% da área preservada. Mesmo que use toda a área que o Código Florestal permite desmatar, não vamos chegar a 12% ou 13% da área total do Brasil. Esse [desmatamento zero] é um jogo dos europeus, e não podemos entrar no jogo deles”, afirma Rosolem.
O professor da Unesp entende que outros países têm direito de estabelecer regras próprias, mas não de dizer o que o Brasil precisa fazer com suas terras.
“Se eles querem regulamentar, temos de dizer ‘tudo bem’, mas vai custar tanto. Eles não podem proibir nada no Brasil. Uma coisa maravilhosa é que se a Europa impuser todas as restrições que eles têm lá, as nossas são ainda maiores”, diz.
“O Brasil é hoje o maior produtor de soja certificada do mundo, o maior produtor de algodão responsável do mundo, temos o maior programa mundial de agricultura de baixo carbono. A briga desses brasileiros (que pedem a inclusão do Cerrado na lei antidesmatamento europeia) é política e ideológica, não é ambiente, não é agricultura, não é segurança alimentar”, enfatiza.
Líder indígena vê articulação contra agricultura no Cerrado
O produtor rural e indígena Arnaldo Copihanama, cuja tribo Paresi cultiva 17 mil hectares de grãos em Mato Grosso, e preserva 1,3 milhão de hectares de mata nativa, desconfia da motivação dos outros indígenas que foram à Europa pedir boicote aos produtos de novas áreas convertidas no Cerrado.
“A gente precisa ver quem está bancando esse povo lá. Quem levou eles para lá e por que estão lá? Isso tudo é coisa articulada, infelizmente é assim que funciona”, afirma.
A Gazeta do Povo fez contato com a Apib e com a Rede Cerrado, para esclarecimentos sobre os motivos da missão à Europa, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
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Fonte: Notícias ao Minuto