[ad_1]
O cuscuz é um prato de significados na casa da chef e professora de gastronomia Aline Guedes, em São Paulo.
O “nordestino’ ―de farinha de milho, amarelinho, cozido no vapor e servido com manteiga― resgata um sabor de “casa” para a família de origem alagoana que se mudou para a capital paulista nos anos 1960.
“Comíamos na casa da minha tia. Era uma das poucas coisas que ainda conectava nossa família ao Nordeste, já que minha mãe chegou a São Paulo com 7 anos de idade, até sotaque perdeu”, conta Guedes.
Já o “paulista” ― também de milho, com uma farinha normalmente mais grossa, cozido na panela, enformado, denso e decorado com ervilhas, frango, ovo, sardinha e o que mais quiser… ― é uma lembrança do lugar da casa onde a mãe, empregada doméstica, e a filha adolescente compartilhavam os poucos momentos juntas: a cozinha.
“Eu aprendi a cozinhar com ela ali, quando ela chegava do trabalho. Então, a forma como eu preparo minha comida, meu cuscuz, hoje é do jeitinho que ela fazia”, diz a chef que já divulgou sua receita em programas na TV.
Por isso, Aline Guedes, que pesquisa a história da culinária brasileira, em especial a herança africana, tem dificuldade de entender a repulsa que o cuscuz paulista recebe hoje nas redes.
Basta buscar pelo nome do prato para confirmar essa percepção. Alguns dos principais resultados não são receitas ― como acontece com outras comidas ― ou dicas de restaurantes que preparam o prato. No lugar, vem comparações com restos de comida no ralo de pia ou com outras referências ainda menos nobres.
Para coroar essa má fama, no final de 2023 o guia de gastronomia norte-americano TasteAtlas classificou o prato como o “pior do Brasil”. O levantamento se baseia nas classificações do público da plataforma.
E, por mais que achar um prato saboroso dependa exclusivamente do gosto de cada um, pesquisadores que estudam a história por trás de alimentos defendem um novo olhar sobre esse prato, considerado patrimônio do Estado de São Paulo.
“É um prato emblemático dos encontros familiares, cheio de memória afetiva”, diz Katherina Cordás, diretora do Centro de Pesquisa e Criatividade do Tuju, braço científico do premiado restaurante paulistano. “E ele tem influência de diversas culturas alimentares e expressa muito bem toda a nossa multiculturalidade”.
‘Tríade da culinária brasileira’
O cuscuz chegou ao Brasil “carregado na bagagem” nos primeiros séculos de colonização, explica Cordás.
Tanto o nordestino quanto o paulista remetem ao couscous comido no Norte da África, região que engloba países como Marrocos e Tunísia.
Por lá, a receita tradicionalmente era (e ainda é) com sêmola de trigo, mas também podia ser preparada de arroz ou cevada.
A presença dos mouros (povos islâmicos de língua árabe oriundos do Norte da África) na Península Ibérica até o século 15 e a presença de portugueses em regiões africanas como Ceuta, perto do território marroquino, fez o prato cair na graça em Portugal.
Segundo a pesquisa de Cordás, o primeiro registro escrito sobre cuscuz foi no século 13, no “Livro de Culinária do Magrebe e Andaluzia na era dos almóadas”, de autor desconhecido. A palavra teria origem no som do vapor na cuscuzeira durante o cozimento: kus-kus.
Mas a chegada do prato ao Brasil não pode ser creditada apenas à influência dos mouros em Portugal, já que a cultura alimentar do cuscuz se espalhou antes por outras regiões africanas ― inclusive por lugares de onde pessoas escravizadas foram traficadas em direção às Américas.
No livro “História da Alimentação no Brasil”, o historiador e sociólogo potiguar Luís da Câmara Cascudo escreveu: “Certo é que portugueses e africanos vieram para o Brasil conhecendo o cuscuz. Aqui é que ele se fez de milho e molhou-se no leite de coco”.
A substituição do trigo pelo milho é bem documentado, uma incorporação de um alimento já consumido pelos povos originários das Américas. “O cuscuz de milho foi solução brasileira, americana, onde o Zea mayz (milho) dominava”, escreveu Câmara Cascudo. A farinha de mandioca também passou a ser incorporada às receitas
Para Aline Guedes, enxergar essa complexidade na formação do cuscuz mostra um entendimento da culinária brasileira de forma multicultural, e não sob uma ótica eurocêntrica. “Ele é um caldeirão dessa tríade que teoricamente forma a cultura alimentar brasileira”, diz, referindo-se aos povos europeus, africanos e indígenas.
Katherina Cordás considera o cuscuz paulista como um símbolo “de um prato que traz muitas transformações” na sua história, um exemplo da culinária de um lugar que, como São Paulo, historicamente atrai imigrantes.
Nordestino x paulista
Muito da onda de críticas que o cuscuz paulista recebe nas redes vem da comparação direta com o cuscuz nordestino.
Um usuário do X (antigo Twitter) escreve que a versão “paulista estragou o cuscuz”, uma “nojeira”. Outros fazem críticas ao Estado de São Paulo de uma forma geral e usam memes.
A socióloga Marina Macedo Rego, que pesquisa na Universidade de São Paulo (USP) o preconceito contra nordestinos, reflete que “grupos sociais estigmatizados resistem às discriminações e preconceitos dos quais são alvo de maneiras diversas, inclusive com o humor”.
Ela enxerga a ascensão nas redes de um discurso que tenta subverter o estigma que o Nordeste tem no Centro-Sul do Brasil, de uma região inferior, e isso acaba levando a certas rivalidades. “Esse fenômeno, no entanto, não deve ser encarado como uma espécie de preconceito, pois é uma resposta a uma discriminação histórica”, diz à BBC News Brasil.
Mas a verdade é que as duas versões do prato têm trajetórias bem distintas na culinária brasileira que devem ser respeitadas, dizem os pesquisadores.
No Nordeste do Brasil, o cuscuz se manteve mais fiel ao “original” africano. Ou seja, mais como um acompanhamento de outros pratos e soltinho.
A antropóloga pernambucana Fátima Quintas explica em seu livro “Segredos da Velha Arca” que o cuscuz, durante sua chegada na época do Brasil Colônia, era comercializado por mulheres negras que “usavam tabuleiros de flandres que ficavam sobre uma armação em forma de X, que continham, além dele, produtos como alfenim, arroz-doce, alféloa, geleias e entre outros”. Há registros da venda em cidades como Salvador, Maceió e Recife.
Já em São Paulo, ele ganhou novas roupagens. Primeiro, com a “mistura de carnes, crustáceos e legumes, o que, no Brasil, não era o habitual”, como registrou Câmara Cascudo.
No Estado dos bandeirantes, que abriram caminhos em direção ao interior do Brasil, o cuscuz ganha ares de uma refeição itinerante, composto de uma mistura de farinha de porco, de milho, com peixe (especialmente bagre), cebola, pimenta….
“Ele vai ganhando os elementos da costa, como os peixes, frutos do mar, e também da roça, como o porco”, explica Katherina Cordás, do Tuju.
A história mais contada é a de que os bandeirantes levavam inicialmente essa farinha misturada com outros alimentos numa espécie de marmita, amarrada aos cavalos.
“Mais tarde essa massa evoluiu para um prato feito em forma de bolo furada, acrescida de ovos, sardinha, tomate e palmito, transformando-se numa receita emblemática”, registraram as antropólogas Dolores Freixa e Guta Chaves no livro “Gastronomia no Brasil e no Mundo”.
Prato feio?
Para Aline Guedes, conhecer toda a história por trás do prato pode despertar interesse naquelas pessoas que hoje têm repulsa a ele. “Quando a gente entende a cultura, o saber que é passado entre gerações, eu acho que a gente enxerga o alimento de outra forma”, diz a chef, que comeu uma versão de cuscuz paulista até num quilombo no Pará, com palmito pupunha e tucupi.
Única menina negra quando cursou gastronomia no interior de São Paulo, Guedes atentou justamente para a falta de referências no Brasil de uma culinária ancestral e popular: “os livros de receitas que a gente acessa, ou que minha mãe usava na casa da patroa, eram de receitas de famílias alemãs, portuguesas, italianas. E não se falava nas receitas brasileiras, como o Brasil transformou comidas como o cuscuz”.
O interesse de provar o prato também pode vir se deixarmos de lado uma discussão sobre a estética, segundo Katherina Cordás —já que o cuscuz paulista costuma ser classificado como “feio” nas redes.
“Acho que isso é um problema na gastronomia contemporânea, muitos cozinheiros pensam mais como o prato vai ficar no final do que de fato se ele é gostoso”, opina Cordás.
“Um prato não precisa ser lindo para ser bom. Eu, particularmente acho o cuscuz paulista superbonito, porque eu acho muito interessante conseguir enxergar todos os elementos que há no prato. Mas é um problema você querer sempre que a comida seja bonita. O que importa é o sabor, se você coloca na boca e é agradável”.
[ad_2]
Fonte: Folha de São Paulo