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As imagens das famosas festas de San Fermín, retratadas no novo filme documental de Almudena Carracedo e Robert Bahar, “Você não está sozinha: a luta contra La Manada” (Netflix, 2024), impressionam.
Como, provavelmente, impressionaram Hemingway há um século. Ele voltaria quase uma dezena de vezes a Pamplona, na Espanha, pra babar no mesmo script:
a multidão vestida de branco, os lenços vermelho-sangue erguidos ao céu.
O murmúrio feroz, crescente, corpos esmagados entre si, tomando a rua como o próprio ar, adquirindo forma líquida entre edifícios históricos, gerando um único organismo, uníssono de expectativa pelo momento auge, orgasmo, suplício, violência.
“Viva San Fermín!”
Soltam os touros. Corpos correm, corpos caem. Os animais, puro instinto de sobrevivência, investem cegamente, meneiam seus chifres, pisoteiam braços, pernas, cabeças — principalmente de homens, jovens e velhos, que vão debandando pelas callejuelas entre o pânico e a euforia.
Ao contrário do cenário idílico-boêmio estilizado pelo escritor em seu “Fiesta” (“O Sol Também Se Levanta”, 1927), porém, a história de “Você Não Está Sozinha: A Luta Contra La Manada” não é sobre encierros de toros — sequer sobre a óbvia e chocante crueldade animal.
“Você não está sozinha”, muy oportunamente, estreia no mês da mulher, e recupera o notório episódio de estupro coletivo conhecido como caso de La Manada, quando cinco homens encurralaram e agrediram sexualmente uma jovem de 18 anos (referida no filme apenas como “Lucía”) durante as festas de San Fermín.
Sanfermines: a epítome da Festa Macha espanhola à Moda Antiga.
O caso, ocorrido em 2016, incendiou e dividiu a opinião pública espanhola. E serviu de empurrão para o primeiro grande movimento #MeToo espanhol, culminando com a aprovação da lei do “Solo Sí es Sí” em março de 2023.
“O caso da vítima do ataque de Sanfermines foi a gota d’água que fez transbordar o copo, que representou tantos casos de violência sexual e detonou o movimento #Cuéntalo, o primeiro #MeToo na Espanha. Foi esse caso que nos levou a investigar mais e a encontrar outros momentos importantes para a história deste filme”, contam os cineastas baseados em Madri, em entrevista por e-mail.
Tendo o caso da Manada como fio condutor principal, “Você não está sozinha” entrelaça as histórias de três mulheres vítimas de violência sexual e as amplifica em uma narrativa caleidoscópica, em que relatos e linguagem visual vão costurando um todo eloquente e revoltante.
Aí cobram novos sentidos, por exemplo, a estátua em homenagem a San Fermín, com seu touro metálico sobre corpos aterrorizados; imagens de câmeras de segurança mostrando esquinas, vestígios de festa; reportagens de época, debates acalorados na tevê; protestos, testemunhos e seus silêncios; olhares diretos, olhares evasivos; multidões; e vazios, muitos.
“A QUEM ESTÃO JULGANDO?”
Além de “Lucía”, acompanhamos os dramas de “Paloma” (nome e voz também fictícios), outra vítima do mesmo grupo, e de Nagore Laffage.
Esta última, morta a golpes, estrangulada e esquartejada em 2008 depois de resistir a um estupro, renasce no filme pela voz de sua mãe, a ativista Asun Casasola.
As palavras de Lucía no filme foram extraídas textualmente de declarações judiciais e cartas enviadas à imprensa. Ela preferiu não participar diretamente do projeto.
O que nos leva a outro tema: o ostracismo das vítimas sobreviventes, que, até hoje, permanecem no anonimato. Com medo, isoladas, perseguidas, exaustivamente escrutinadas.
Como Laffage, julgada, inclusive depois de morta. No tribunal, o júri perguntou a Casasola, sua mãe: “sua filha era muito ‘ligona’? (algo como “paqueradora” em espanhol). Recordando esse momento no documentário, ela devolve a pergunta: “a quem estão julgando nesta sala?”
Guardadas as vivências intransferiveis de cada uma, as vozes de Lucía, Paloma ou Laffage poderiam ser também a da jovem que levou o ex-jogador Dani Alves à prisão em Barcelona, escassos dias antes do lançamento do documentário. Foi a primeira condenação de um personagem público depois da aprovação do Solo Sí es Sí.
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Na combativa filmografia documental de Bahar e Carracedo, o fio condutor são, sem dúvida, as vozes. Muitas. Figuram em toda a sua elasticidade abissal: entrecortadas; rebeldes, tristes, pungentes; esperançosas, trêmulas, trágicas, distantes.
Assim, por exemplo, pelo fiapo de sussurro de uma mulher idosíssima, María Martín, somos introduzidos ao universo de “O Silêncio dos Outros” (2018), premiada obra da dupla produzida por Almodóvar, sobre justiça para vítimas do franquismo.
“Que injusta é a vida”, pondera María. O queixo enrugado sobre a bengala, o entardecer rosado detrás, o olhar velho submergido na menina-que-foi de 6 anos, quando perdeu a mãe para uma guerra que não era sua, o corpo abandonado numa estrada qualquer, nua, o cabelo rapado, para nunca mais. Ela pausa.
“Não a vida”, corrige. “Nós, humanos… somos injustos.”
Não está só, não podemos estar. Entre o silêncio e a eloquência, as muitas vozes de Almudena e Robert, de Marías, Lucías, Palomas e Asuns. Mês da mulher, que venha muito mais.
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“ESSAS NÃO SÃO SITUAÇÕES PONTUAIS”
Até o último minuto, o projeto foi mantido em segredo. Em uma entrevista, Almudena menciona que nem seus familiares sabiam. Por quê?
Robert: Desde o início entendemos que essa era uma história complicada de trabalhar devido ao seu altíssimo impacto midiático. Queríamos manter o nosso foco – que o filme abordasse a história a partir da versão das vítimas sobreviventes – e poder trabalhar no nosso próprio ritmo, dedicando o tempo necessário a cada processo e sem pressões externas nem para nós, nem para os participantes.
Ao mesmo tempo, era uma prioridade nossa poder proteger as vítimas sobreviventes das contínuas especulações sobre o filme. Para conseguir isso e tratar este documentário como havíamos proposto, tivemos que poder trabalhar em segredo. Se conseguimos manter em segredo as filmagens e a produção, é sem dúvida devido ao enorme empenho com a história e com as vítimas por parte dos/das participantes e de toda a equipe.
Qual é sua perspectiva sobre o recente julgamento de Dani Alves, especialmente considerando o ‘timing’ e o movimento “Solo Sí es Sí” em curso? Como este caso e sua repercussão se conectam com os temas explorados no filme?
Almudena: Essas situações não são pontuais: ocorrem em diferentes ambientes de trabalho, nas famílias, na educação, estão por toda parte.
Como se expõe no documentário, e como mostrou o movimento #Cuéntalo, o denominador comum é que as vítimas são sempre questionadas. Através deste filme, queremos que as pessoas possam compreender esses processos de outra forma, vivenciá-los através da perspectiva das vítimas, para depois emergirem com outra perspectiva. Para que, como sociedade, sejamos capazes de dar visibilidade a esta violência e apoiar sempre as vítimas.
O movimento #Cuéntalo trouxe à luz muitas histórias não contadas. Almudena ainda acrescentou a sua própria voz às muitas vozes retratadas no filme. Como homem, como seria o seu #Cuéntalo?
Robert: Como homem, sempre pensei que tinha consciência social e que era uma pessoa respeitosa. Mas, no processo de fazer o filme, percebi que não tinha entendido muitas coisas.
Ler e catalogar tantas centenas – milhares – de mensagens me fez perceber que quase todas as mulheres já sofreram algum tipo de violência sexual, e isso também significa me perguntar o que minha mãe ou irmã vivenciaram. Me levou a repensar minhas próprias ações e rever muitos momentos da minha vida. Muda toda a perspectiva.
Almudena, qual foi a sensação de se juntar às outras vozes sobre as quais você estava contando a história?
Almudena: Para mim foi um processo muito doloroso, tanto por compilar meus “Cuéntalos” quanto por entender que eles eram parte de algo muito mais massivo do que eu jamais havia imaginado: que essa violência sexual existia em todos os cantos do planeta e que, quando você está com sua família, ou com colegas de trabalho, ou fazendo compras na rua, essas mulheres ao seu redor sofreram algum tipo de violência sexual. Não é algo retórico. É real.
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Fonte: Uol