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Um podcast feminista francês comenta o livro “A Vingança É Minha” logo após sua publicação. Sobre o casal da trama: é o retrato da dominação masculina e de uma relação tóxica. Sobre a protagonista, advogada que vai representar na Justiça o tal casal mas que passa por um momento psicologicamente difícil: é vítima de manipulação mental da parte de todos à sua volta.
Para aqueles que buscam uma chave de interpretação para o novo romance de Marie Ndiaye, lançado no mês passado no Brasil pela Todavia, porém, a autora não aconselha seguir por essa trilha.
“O que eu amo na ficção é a ambiguidade. Me incomoda reduzir minhas personagens à figura de pessoas sob dominação. Não é assim tão simples”, diz Ndiaye quando a reportagem menciona a leitura feita pelas apresentadoras do podcast “Quoi de Meuf” —trocadilho com a expressão “o que há de novo” e uma gíria para a palavra “mulher”—, Clémentine Gallot e Emeline Ametis. “Não tenho vontade de tratar romances como manifestos”, completa.
Um baita chega para lá nas críticas literárias de redes sociais, que insistem em livros “necessários” e “potentes” e nas quais abundam formulações como “revelar afetos” e “ressignificar as narrativas”.
“A Vingança É Minha” é mesmo um livro que coloca o leitor e a leitora diante de uma confusão para a qual se busca uma saída e, sobretudo, uma resposta. Lançado na França em 2021, o romance conta a história da Dra. Susane, uma advogada de Bordeaux, no sudoeste francês, na casa dos 40 anos. Ela é procurada por Gilles Principaux, marido de uma mulher que acaba de matar os três filhos do casal. Mas a protagonista tem a impressão de conhecer o homem de um passado distante, de quando era criança.
Da personagem-título não sabemos o nome, apenas o sobrenome, que vem sempre seguido do título que a sua profissão lhe dá. Para Ndiaye, no momento em que o livro começa, Dra. Susane vive apenas para o trabalho. “Seu título a define, ela é só uma advogada, e não deseja ter outra identidade”, diz.
A “astúcia”, segundo a autora, é ter escolhido um sobrenome, Susane, que é também um nome. “Quando vamos lendo, podemos nos identificar com ela, e acabamos mesmo sentindo como se fosse um nome.”
Essa pergunta —será esse homem o garoto que conheceu há 30 anos ou não?— cresce no interior da protagonista até tomar todo o espaço de sua vida. O leitor que a acompanha, pois a narrativa avança nos pensamentos da advogada, vê-se então embrenhado com ela na dúvida ao mesmo tempo em que tenta entender o caso de infanticídio.
Para Ndiaye, que se dedicou muito e longamente a estudar casos de mães que matam seus filhos, sempre resta um mistério, um enigma incompreensível das razões que movem esses crimes.
Os dois monólogos do livro, um para cada um dos esposos Principaux, não facilitam a tarefa. Único respiro na narrativa feita pela Dra. Susane, os monólogos são, nas palavras de Ndiaye, uma “justaposição dos pontos de vista” que vem mostrar essa ambiguidade do romance. Ali, com vozes e cacoetes de fala bastante singulares, marido e mulher tentam explicar à advogada a morte dos filhos pequenos.
A escritora conta que criou o livro ao mesmo tempo que escrevia o roteiro de “Saint Omer” ao lado da cineasta Alice Diop. O filme de tribunal reconstrói numa ficção o julgamento de um caso real, ocorrido numa praia do norte da França em 2013, no qual uma jovem matou sua filha de 15 meses. “Um não existiria sem o outro”, diz Ndiaye.
Ela começou a escrever ainda criança, e publicou seu primeiro romance aos 19 anos, em 1985. Desde então, não parou. Já lançou mais de 30 livros, entre romances, peças teatrais e obras infantojuvenis, e é uma celebridade literária em seu país. Além disso, seu irmão, Pap, historiador e professor universitário, foi ministro da Educação recentemente, por cerca de um ano, entre 2022 e 2023.
Mas fazia um tempo que não chegava às prateleiras brasileiras um livro da francesa que, filha de pai senegalês, em 2009 ganhou o Prêmio Goncourt, o mais importante da francofonia, com “Três Mulheres Fortes”.
A láurea abriu as portas para a publicação deste e outros dois títulos de sua autoria no Brasil, “Coração Apertado” e o infantil “A Diaba e Sua Filha”, todos pela Cosac Naify. Em São Paulo, a última notícia que houve dela foi a montagem da peça “Hilda”, em 2018, com texto de 1999.
A peça tem uma semelhança com seu livro mais recente, a relação entre patroa e empregada doméstica. Dra. Susane emprega em seu pequeno apartamento, quase que a contragosto, a mauriciana Sharon, que vive irregularmente na França. Ao mesmo tempo em que acredita estar fazendo uma boa ação, a advogada, cuja mãe também era empregada doméstica, não se sente à vontade com a situação.
“É uma questão de poder e de subordinação, entre mulheres, no ambiente doméstico. O poder sobre alguém que deve fazer aquilo que você poderia muito bem fazer”, diz Ndiaye. “Como em ‘Hilda’, a questão que me preocupa é: que direito temos de ser servidos por outra pessoa? De mandar uma outra mulher limpar nossa casa?” Outra pergunta para a qual o leitor terá de buscar ele mesmo a resposta.
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Fonte: Uol