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Roberto Bolaño invoca Kafka já na epígrafe de “O Gaucho Insofrível”. O trecho “Talvez, não percamos tanto assim, depois de tudo” pertence ao conto “Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos”, e indica como o escritor chileno escolheu se despedir: fazendo eco da obra do tcheco.
O último livro do autor, recentemente lançado no Brasil, foi entregue por Bolaño quando estava a caminho do hospital onde morreria, um arquivo original preparado para a publicação.
O livro reúne cinco contos e textos de duas conferências. Um dos contos é “O Policial dos Ratos”, narrado em primeira pessoa pelo personagem Pepe, um roedor que é também agente de segurança e se diz sobrinho de outra rata famosa: Josefina, a cantora do famoso conto de Kafka.
A narrativa foi publicada no livro “O Artista da Fome”, que Kafka também entregou para publicação às vésperas de sua morte, e considerada pelo crítico literário e teórico marxista Fredric Jameson a “utopia sociopolítica de Kafka, sua visão de uma sociedade comunista radicalmente igualitária”.
Não se trata apenas de uma homenagem de Bolaño. É uma filiação poética, e mais, uma declaração sobre o mundo que ele havia encontrado no século 20 (em que a ideia do que é comum ainda era disputada, mesmo diante do trauma formador das ditaduras latino-americanas) e o mundo que ele ia deixando, já do século 21 (e já em pleno desabamento, construído sobre os frágeis simulacros de experiência do capitalismo tardio).
Também disso, embora com foco em outro aspecto, trata em larga medida o conto que dá título ao livro. “O gaucho insofrível” é o indivíduo que, depois de deixar o campo, ir viver na cidade, construir uma carreira de atributos intelectuais e criar a família, não quer soltar a ilusão de pertencimento diante do esgarçamento do sentido da própria vida após a morte da esposa e o distanciamento dos filhos, recorrendo à volta ao campo e à encarnação de um mito da literatura sul-americana do século 20, o gaucho. Mas chegando lá, sequer os pampas são os mesmos. É um conto alegórico, que fala com o sujeito contemporâneo desamparado do mundo que se foi e do que virá.
O livro oferece momentos que são um prato cheio para quem gosta de procurar pistas das biografias dos escritores em suas obras, muito embora durante a vida Bolaño tenha sempre se esquivado, quando não mentido deliberadamente, sobre detalhes da sua vida pessoal, como esperado por alguém forjado na clandestinidade política e, consequentemente, na fuga.
Oferece também uma espécie de confissão inflamada e um tanto melancólica da doença hepática que —ele sabia— viria a matá-lo. Trata-se de um texto, por que não dizer, emocionante, no qual um dos maiores escritores do século 20 se dirige a seus leitores para falar, à beira de seu desaparecimento, assunto tão caro a sua obra, e ancorado em poetas como Mallarmé, Baudelaire e Rimbaud, sobre a “viagem” que estava por vir; sobre a afirmação da vida, que está “em jogo constante com a morte”.
“O Gaucho Insofrível” tem o efeito arrebatador próprio da prosa do chileno. O prazer estético e a melancolia do latino-americano traumatizado estão, ali, em estado de pleno contato com o que viria a lhe acontecer —tanto a própria doença quanto a enfermidade do mundo contemporâneo.
Nesse mundo, todos parecemos compartilhar a angústia de seu rato policial: “Já tarde demais para tudo, pensei. E também pensei: em que momento ficou demasiado tarde? Na época de minha tia Josefina? Cem anos antes? Mil anos antes? Três mil anos antes?”.
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Fonte: Uol