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Em meio a uma epidemia de dengue que preocupa grande parte do Brasil, chega às livrarias “Dengue Boy”, do argentino Michel Nieva. Protagonizado por uma figura mutante, híbrido de mosquito e humano, a ficção científica se passa em um futuro de profundas transformações climáticas e se preocupa em demonstrar a continuidade entre o passado de exploração da América Latina e sua realidade contemporânea.
Usando de um humor refinado que, por vezes, beira o absurdo, a imaginação delirante de Nieva nos coloca perante uma extrapolação literária que alia crise existencial, disforia de gênero e desejo de vingança por parte dos que vêm de baixo. Tudo isso em um mundo marcado pela especulação financeira impulsionada por catástrofes e pela destruição.
Estamos no ano de 2272, e as mudanças climáticas transformaram toda a geografia da Terra. Com temperaturas médias acima dos 80°C, a humanidade precisou se deslocar para os polos, onde ainda há condições de habitação.
Devido ao degelo das calotas polares, a Patagônia argentina se tornou um arquipélago e passou a ser chamada de Caribe Pampiano, local onde se passa a história. Enquanto alguns moram nas belas praias de Santa Cruz, construídas por meio de geoengenharia, o núcleo de personagens centrais do romance vive em Victorica, uma cidade poluída e tóxica na periferia.
Uma dessas figuras é o Menino Dengue, misto de adolescente e mosquito que é vetor de uma variante de dengue super potente. Sua figura monstruosa é objeto de violência por parte de seus colegas, o que o faz odiar profundamente seu corpo insetoide.
Em um momento de crise pessoal aguda, o protagonista tem uma revelação: ele não é Menino Dengue, mas sim Menina Dengue. Sua transição de gênero é libertadora e a imbui de um propósito, um caminho de vingança que a levará aos mais diferentes locais da nova geografia do planeta em busca dos verdadeiros responsáveis por sua monstruosidade.
A saga acaba por colocar a Menina Dengue no centro do poder capitalista global e cósmico. É então que ela se descobre fruto de um experimento científico de empresas de “especulação viral”, que criam insetos mutantes para prever —e capitalizar em cima de— novas pandemias.
Em paralelo a essa história, acompanhamos Dulce, um garoto que vive em uma situação material precária e passa os dias imerso no jogo de realidade virtual “Cristãos versus Índios”, do videogame fictício Pampatronics (no seu caso, uma versão pirata dele, o Pampatone).
Esse jogo, que revive o genocídio indígena ocorrido nos pampas argentinos ao longo do século 19, é a chave para a descoberta de segredos profundos da história da Terra, conectando a ideia de crise climática a um passado de genocídio, exploração humana e extrativismo material.
O livro, apesar de curto, é marcado por uma profusão alucinante de conceitos e referências. Além da relação imediata com Franz Kafka e seu célebre protagonista inseto, também somos confrontados com criaturas de tempos longínquos à moda de H.P. Lovecraft, com a literatura gauchesca da Argentina do século 19, e com o que há de mais experimental no campo da ficção científica contemporânea.
Esse liquidificador literário, por mais disparatado que possa parecer, alcança um resultado surpreendente em razão da coesão narrativa e do potencial especulativo de “Dengue Boy”. Fortemente marcado por uma perspectiva latino-americana, Nieva aponta para uma densa reflexão sobre os impactos duradouros do colonialismo, que devastou e segue devastando grande parte do globo dos pontos de vista social e ambiental.
Se as mudanças climáticas são irreversíveis como apontam os cientistas, talvez a América Latina seja um local privilegiado para observar os primeiros efeitos de uma condição que possivelmente será a norma para o mundo todo. O excelente romance de Nieva demonstra que, também do ponto de vista literário, é aqui que se encontra o verdadeiro laboratório onde o futuro da humanidade está sendo construído.
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Fonte: Uol