[ad_1]
Se os concretistas pretendiam da arte abstrata uma linguagem universal e racional, que não significasse nada além do observado, Lygia Clark foi além. Esmiuçou a geometria em tela até superar os planos.
Deu tridimensionalidade às suas formas, transformando-as em objetos. Encerrou os limites entre obra e vida. Não bastava que a arte pensasse a estética, ela deveria transmitir sensações. Mais que isso, deveria ter um propósito.
É justamente uma obra da série “Bichos”, a materialização de sua geometria, que dá nome a mostra “Lygia Clark: Projeto para um Planeta”, que reúne o trabalho da artista na Pinacoteca de São Paulo mais de uma década após a última grande exposição de Lygia no Brasil.
Os “Bichos” são esculturas feitas em recortes de metal ora arredondados, ora pontiagudos, ligados entre si por dobradiças. Depois de duas guerras mundiais, a pintura e a escultura pareciam não satisfazer mais os anseios de uma sociedade bombardeada por produtos e informações. Alguns artistas, então, passaram a criar objetos —elementos presentes no cotidiano de todos.
Como qualquer outro objeto, as suas criaturas são manipuláveis. As dobradiças permitem que a mesma obra seja moldada em inúmeros formatos, ao gosto de quem a manuseia. Às vezes, causam frustração, por não pararem de pé na disposição escolhida.
Na Pinacoteca, réplicas dos “Bichos” manufaturados pela própria Lygia são dispostos logo na entrada no circuito, perto dos originais, para que o visitante possa se aventurar a moldá-los.
Nas paredes, a mostra reúne as telas que antecederam o nascimento deles. As pinceladas lembram estilos de vanguardas modernistas, com suas formas expressivas e coloridas, às vezes figurativas —como é o caso de uma série de escadas em espiral pintadas sob influência de Jules-Fernand-Henri Léger e Burle Marx—, mas não demoraria para que a artista mergulhasse na geometrização radical.
É nesse período que Lygia cria o conceito de “linha orgânica”, o traço que não é riscado na tela, mas que surge do encontro entre dois planos. Telas pintadas no final da década de 1950 mostram desenhos de molduras, como se fosse uma tela pintada na tela, e objetos que extrapolam essa divisa. A próxima a ser superada deveria ser a moldura, a grande responsável por separar a tela da parede —ou a arte da vida.
Nesse período, a artista participou da primeira exposição neoconcretista no MAM do Rio de Janeiro, com uma série de quadros pretos e chapados. As poucas linhas brancas traçadas sobre as telas não permitiam que o olhar pudesse separar as obras da parede onde haviam sido penduradas.
Xeque-mate. Lygia engolia de vez o espaço que deveria, supostamente, servir apenas como apoio para a sua arte. Ela havia abolido a moldura, que separa a arte da realidade. Abdicou das cores e não separaria mais figura e fundo. O rompimento com a representação modernista era derradeiro.
Para Ana Maria Maia, uma das curadoras da mostra na Pinacoteca, a obra de Lygia Clark, apesar de abstrata, envolvia a vida ao provocar sobre os limites do corpo, das instituições e da própria arte. “[Lygia] criava em um momento em que artistas tentavam reorganizar a vida social, repensando um projeto mundo. Hoje estamos vivendo, de novo, um momento de quebra das relações”, diz.
Logo as formas geométricas se tornariam relevos nas telas, ganhariam vida, e dariam a luz a “Bichos”. Depois, vieram os “Trepantes”, ou bichos invertebrados, estruturas feitas em borracha que pairam sobre uma sala inteira na mostra.
Em 1963, a obra “Caminhando” plantou a semente para uma crise existencial. Na tentativa de desmistificar a ideia de artista enquanto gênio e desafiar o museu como guardião da arte, Lygia propôs uma obra que consistia em recortar um pedaço de papel. Ali, a arte não poderia ser colecionável, para o pavor dos marchands do modernismo, mas era uma ação. Com ferramentas baratas, qualquer um poderia criar.
Pollyana Quintella, também curadora da mostra na Pinacoteca, diz que a artista questionou em seu diário, naquele período, se fazia sentido continuar produzindo. “Ela superou o objeto artístico e pensou, ‘o que faço agora?’. O próprio corpo, então, se torna o objeto de trabalho”, diz.
Nascem, então, os “Objetos Relacionais”, feitos com os materiais mais simples e baratos possíveis. Um deles, por exemplo, consistia em colocar uma pedrinha sobre um saco plástico cheio de ar. Quem o segurava deveria apertá-lo e soltá-lo repetidamente, transformando-o em uma espécie de pulmão que se expande e comprime. O importante era não deixar a pedra cair —o movimento traria, então, uma sensação de cuidado.
Obras interativas se tornaram seu foco, como “A Casa É o Corpo: Labirinto”, apresentada na Bienal de Veneza de 1968 e montada em uma das salas da Pinacoteca. Trata-se de uma espécie de túnel com várias salas, cada uma delas com objetos que estimulam os sentidos —como espelhos deformadores e pelos gigantes em tecido— e que simula um parto. O visitante deve atravessá-lo, como se estivesse nascendo.
Na década de 1970, Lygia parte para a efervescente Paris da contracultura, pós-Maio de 1968, para lecionar na Sorbonne. Lá, desenvolve uma série de experiências em grupo com seus alunos. “Rede de Elástico”, por exemplo, consistia na montagem de uma teia de elásticos em conjunto, para que depois todos se enroscassem nessa estrutura, formando um só corpo coletivo. A atividade será feita ao vivo na exposição, em dias específicos.
De volta ao Brasil, a artista se dedicou de vez à experimentação com o corpo, que ela considerava alienado pelo cansaço, esgotamento e conservadorismo do mundo contemporâneo. “Lygia se incumbiu da missão de despertar esses corpos através da experiência proporcionada pelos seus objetos”, diz Quintella. A arte deveria, enfim, curar.
Lygia Clark morreu em abril de 1988 e, até o fim de sua vida, realizou consultas individuais em seu apartamento em Copacabana, convencida de que havia criado um método terapêutico —fato que gerou debates acalorados no meio psicanalítico. “Estruturação do Self” consistia em sessões de interação com objetos estimulantes e que reavivavam memórias, relatadas ao término da atividade.
Em 2014, o MoMa, em Nova York, inaugurou uma exposição sobre o trabalho da artista brasileira intitulada “Lygia Clark: O Abandono da Arte”. Dez anos depois, o título não pode mais ser considerado preciso, argumenta Quintella, a curadora. “A própria Lygia não fez definições, mas ela nunca abandonou a arte completamente.”
[ad_2]
Fonte: Uol