[ad_1]
Debaixo do sol escaldante de uma tarde primaveril em São Paulo, uma dupla valsava, com estacas de madeira pontudas saindo de suas bocas, uma em direção à outra. Era uma performance de Renan Marcondes, parte da coleção particular de Beatriz Yunes, integrante do conselho administrativo do Pompidou, em Paris, e colecionadora de arte.
A apresentação acontecia na área externa da casa, uma vasta propriedade no Jardim Europa, em São Paulo, emoldurada por uma obra de Rodrigo Ohtake, entre a varanda e a piscina, onde se distribuíam colecionadoras e conselheiras de museus de vários países, conversando ora em inglês, ora em espanhol ou francês.
Entre garfadas de paella e goles de vinho branco, a rede de mulheres de todo o globo que se reunia naquela tarde apreciava o crème de la crème da arte contemporânea. Dali, partiriam para uma expedição pelas principais instituições de arte brasileira, como o Inhotim e a última Bienal de São Paulo, que ainda estava em cartaz.
O grupo traduz duas realidades pulsantes do mercado da arte no Brasil —o interesse internacional e o dedo feminino nas engrenagens do negócio.
Se nas paredes dos museus cabem questionamentos como “as mulheres precisam estar nuas para entrar no museu?”, feito pelas feministas do coletivo Guerrilla Girls em suas obras, cartazes amarelos, com colagens de cabeças de gorila e letras garrafais, o mesmo não vale para o mercado. No Metropolitan, em Nova York, menos de 2% das artistas eram mulheres. No Masp, em São Paulo, são menos de 6%.
Mas, nos negócios, são elas que dão as cartas. Com mulheres nos nomes, na fundação, na administração e nos conselhos, a arte comercial de São Paulo borbulha com chefas no comando das principais galerias, feiras e na articulação de seu ecossistema, que inclui a compra e venda de obras e a vida social do mundo artístico, com seus coquetéis, jantares e vernissages. É tudo parte do jogo.
Foi, segundo Luisa Strina, dona de uma das primeiras e mais importantes galerias da cidade, um processo orgânico. Hoje com 80 anos, Strina celebra agora o cinquentenário de sua casa. A comemoração não poderia ter vindo em melhor momento. Uma das artistas representadas por ela, Anna Maria Maiolino, recebeu o Leão de Ouro em Veneza pelo conjunto de sua obra, no fim do ano passado.
Apesar de ter aberto seu próprio espaço, com seu nome, em 1974, ela começou na venda de arte anos antes, seguindo conselhos do artista Luiz Paulo Baravelli. Hoje, ela funciona no térreo de um prédio comercial de luxo, onde uma fachada de vidro anuncia seu nome, grafado em letras maiúsculas e metálicas nas portas.
O escritório de Strina, onde ela me recebeu, fica aos fundos do espaço expositivo. Ela conta que, na época da fundação de sua galeria, existiam várias outras, mas elas não representavam os artistas, nem tinham uma linha de pensamento específica. “Vendiam desde um trabalho contemporâneo até um do Renascimento e um primitivo”, diz ela.
“Meu diferencial foi que eu fiz uma galeria com meu nome, que representava só aqueles artistas determinados. Foi uma ideia baseada nos espaços americanos”, diz. Estão sob a asa de Strina nomes como Cildo Meireles, Tunga, Alfredo Jaar e Olafur Eliasson. Visualmente, não são parecidos, mas todos são conceituais. Strina vende apenas aquilo em que acredita.
“A maioria das pessoas compra uma coisa para decorar a casa e ‘boa noite, até logo'”, afirma Strina. “Aqui não é uma galeria de decoração. É uma galeria de colecionista”, diz.
As obras de Meireles, segundo Strina, são algumas com as quais ela tem uma relação de afeto. Mas ela não é apegada, nem deixa de ver boas oportunidades.
Beatriz Yunes conta que Strina doou uma obra do artista para o acervo do Pompidou quando Bernard Blistène, diretor da instituição de 2013 a 2021, visitou a galeria há cinco anos. O movimento, longe de ser meramente altruísta ou deslumbrado, é um acerto de mercado —ter obras em instituições é a meta de grande parte dos artistas, já que a chancela de um museu é passagem direta para a valorização.
A galeria de Strina é contemporânea da galeria de Raquel Arnaud, outra veterana do mercado da arte paulistano que celebra o cinquentenário neste ano. Arnaud trabalhou no Masp no finzinho dos anos 1960, fez estágio na galeria Collectio e, em 1974, fundou o Gabinete de Artes Gráficas com Monica Filgueiras. O nome entregava —elas não trabalhavam com esculturas.
A limitação fez Arnaud seguir seu próprio caminho em 1980, quando ela fundou a galeria que leva seu nome. Ela segue a linha americana empregada por Strina e mantém um rigor estético no seu leque de artistas.
Aos quase 90 anos, ela mantém agendas intensas para dar conta dos compromissos da galeria. Seu cachorrinho de estimação, Lilo, a acompanha. Ela diz que ele não dá entrevistas —nem frequenta as instituições.
“Colocar o meu nome na galeria não foi nem por machismo, nem por feminismo. Foi uma busca por identidade”, diz ela. Dos 25 artistas de Arnaud, nove são mulheres. Iole de Freitas, Sergio Camargo, Carla Chaim e Sérvulo Esmeraldo estão entre seus representados.
“Não tenho tantos artistas. Não dá para tratar tantos de uma vez”, diz Arnaud. Ela se mantém próxima de seu elenco —e gosta que seja dessa forma. Ela se mantém tão próxima que ela cuida do espólio de Camargo, além de ter fundado, em 1997, o Instituto de Arte Contemporânea para abrigar os documentos, projetos, desenhos e cartas dele. “Não tinha onde colocar esses documentos. Depois que criei esse arquivo, outros artistas quiseram colocar os seus ali também.”
A memória e o ímpeto da continuidade se fazem presentes nas gerações que sucedem Strina e Arnaud.
Fora do eixo padrão das galerias da Vila Madalena e dos Jardins, Marcia Fortes e Alessandra D’Aloia instalaram seu negócio, a Fortes, D’Aloia & Gabriel, num galpão —reformado— na Barra Funda. Antes uma tecelagem, o lugar agora tem o depósito, um mezanino com paredes de vidro, onde funciona o escritório, e um jardim, com um banco assinado por Adriana Varejão, uma das joias da coroa da galeria.
“As maiores galeristas de Nova York, que ainda é o centro da arte contemporânea, são mulheres. Marian Goodman, Barbara Gladstone, Paula Cooper”, diz Fortes. A lembrança de Nova York não é leviana. Ela viveu lá por mais de uma década anos, dos 20 aos 30 anos. Na época, ela era jornalista e funcionava como uma correspondente freelancer na cidade, concentrada na área cultural.
Na mesma época, em 1992, Marcantonio Vilaça, amigo próximo de Fortes, abriu a então Camargo Vilaça. Ele foi um dos grandes promotores da arte brasileira no mundo.
Vilaça ficou oito anos à frente do projeto e morreu na noite do dia 31 de dezembro de 1999, aos 37 anos. Segundo a galerista, o amigo emendava feira atrás de feira de arte e nem sequer conseguia manter itens básicos de alimentação em sua casa, já que estava sempre na estrada. “Ele era competidor, assim, no sentido de tratar os galeristas como rivais, o artista é bom, eu quero, rouba”, diz. A rotina dele era, segundo ela, intensa demais. “Eu digo que ele morreu de galeria.”
Fortes afirma que, depois de assumir as rédeas da galeria, entre idas e vindas com sócios, mudou o modelo de negócios. “Existem vários modelos de galeria, todos são válidos. Mas não somos uma galeria comercial, não somos uma galeria de compra e venda de objetos de arte. Somos representantes de artistas, somos casados com os artistas”, diz.
Mas o ritmo acelerado e clima de “Jogos Vorazes” é comum no mercado da arte, que depende de feiras, colecionadores, compradores e, claro, dinheiro.
Dentro do perfil mais comercial, Nara Roesler é quase uma magnata entre as galeristas —não seria exagero comparar a marchande a Larry Gagosian, o galerista mais poderoso dos Estados Unidos e self-made man. Ao modo Gagosian, Roesler foi de dona de loja de design no Recife, sua terra natal, para marchande na avenida Europa.
Na galeria de Roesler, enquanto ela não chegava para a entrevista, um a um seus filhos deixaram comentários em tom de brincadeira sobre os sócios, eles, serem homens.
“Os sócios são homens. Mas a fundadora é mulher”, disse Roesler. Ela se mudou para São Paulo, separada e mãe, em 1986. Embora sua primeira experiência como galerista, ainda no Nordeste, tenha sido bem-sucedida, em São Paulo, ela até conhecia críticos e artistas, mas nada de compradores.
“Na época eu tinha uma assistente que era uma paulista quatrocentona que conhecia todo mundo”, conta ela. “Eu era fora do ninho da sociedade paulista.”
Hoje, o cenário é outro. Roesler lembra os maiores colecionadores do país entre sua cartela de clientes —Alfredo Setubal, José Olympio, Luis Paulo Montenegro. Homens de peso. “Às vezes, alguns clientes compram até sem ver. Você fala que está abrindo uma exposição e aconselha uma obra que caberia na coleção, ele topa.”
“Roesler implementou muita coisa no sentido empresarial, de uma galeria altamente comercial”, afirma Fortes.
O cardápio parrudo de artistas ajuda. Abraham Palatnik, Vik Muniz, Artur Lescher, Jaime Lauriano, Julio Le Parc, Tomie Ohtake. “Todos os artistas queriam estar no MoMA. Eu ainda não cheguei lá”, diz Roesler. “Mas vou chegar.”
Nem todos no mercado da arte nascem ali dentro, embora pareça um ambiente impenetrável. Mas nem todo outsider chega ao sucesso comercial de Roesler.
Em contraponto ao universo das grandes galerias, mergulhadas em vernissages glamorosas e com artistas incontornáveis entre seus representados, as marchandes menores e independentes passam, sem floreios, perrengue.
Assim como Roesler, Jaqueline Martins, marchande desde 2011 à frente da galeria que leva seu nome, na Vila Buarque, criou sua carta de clientes na unha. Ela, porém, sem ajuda de uma assistente quatrocentona.
Nascida no interior de Minas Gerais, ela conta que manteve por um ano uma lista de nomes que via em jornais e revistas, em colunas sociais, de todos que consumiam, escreviam ou falavam sobre arte. Quase como um mapa da arte de São Paulo.
Com foco em arte conceitual, ela investiga os artistas esquecidos da ditadura militar brasileira e joga uma nova luz sobre eles. Hoje, ela representa nomes como Ana Mazzei, Regina Vater e Hudinilson Júnior.
Martins faz parte desse outro grupo de galeristas, com espaços menores e prioridades diferentes de Roesler, Arnaud ou Strina, já peças consolidadas no mercado nacional e internacional. A entrada de sua galeria dá notícias das diferenças entre os projetos, com sua portinha de metal e uma fachada diminuta.
O espaço das galerias tende a obedecer a um certo padrão. Uma mesa ou balcão recepciona quem se atreve a passar pelas portas pesadas, de vidro ou de metal, que costumam estar fechadas. Algumas exigem até que se toque uma campainha para entrar. Elas encerram galerias amplas, de pés direitos extravagantes e pisos discretos.
Com piso de taco, uma cozinha no fundo de uma pequena sala que abriga as obras e uma escada de madeira que leva para um segundo piso, é no cenário aconchegante de uma das casas na vila modernista de Flávio de Carvalho, nos Jardins, que Maria Montero faz seu trabalho de galerista de guerrilha à frente da Sé.
E ela não poupa detalhes sobre as agruras de gerenciar um espaço independente.
Depois de anos trabalhando com arte em eventos, fossem bienais ou patrocínios de grandes marcas, Montero fundou o espaço Phosphorus, em 2011, com uma amiga. “Era um casarão no centro, todo fodido.” Na época, ela estava na galeria Luciana Brito, mas foi demitida depois da primeira exposição no novo espaço, apesar de ter avisado a chefe. “Acho que ela não tinha entendido o tamanho do rolê.” O tamanho, no caso, era ter Marina Abramovic como frequentadora.
Sem emprego e sem financiamento, Montero começou a procurar modelos de gestão do espaço independente. “Os primeiros seis meses foram completamente anárquicos, eu chamei os amigos e a gente fez. Não tem muito disso em São Paulo. Aqui é um sistema muito vertical”, diz Montero.
Apesar da experiência, ela tinha resistência à ideia de abrir uma galeria, mas acabou cedendo. “Eu sei que é um comércio. Eu achava que a conta não ia fechar, e não fecha mesmo em um país que não tem nenhuma política para artistas”, diz. “Realmente não tinha como fazer guerrilha. Galeria não é guerrilha. Mas foi, né?”
O questionamento em torno da maneira como funcionam as galerias tradicionais permeou também a fundação da Hoa, de Igi Ayedun, vizinha de bairro da Fortes, D’Aloia & Gabriel na Barra Funda.
A Hoa é nada menos que a primeira galeria brasileira de propriedade de uma mulher negra, título que Ayedun carrega com pesar. “Fico feliz porque pelo menos o que eu faço é uma abertura de caminho para outras pessoas”, diz.
A ideia da galeria veio no meio da pandemia, como plataforma para os amigos artistas que Ayedun fez na Europa, Israel e Marrocos, lugares em que viveu como jornalista e artista visual. Com pinta de jet-setter, ela brincou, ao me receber numa casa de Paulo Mendes da Rocha, em Santo Amaro, que costuma estar vestida de Chanel, e não com roupas simples e manchadas de tinta azul, sua marca registrada.
Ayedun levou para o modelo de negócios preocupações com a sua ancestralidade que vão além de quem pinta os quadros expostos na parede. Ela diz que faz questão que todas as vendas sejam feitas por contrato e que o direito de sequência seja aplicado, de forma que, caso uma obra seja valorizada em uma eventual revenda, o artista tenha direito a um percentual sobre a compra.
“A gente tem que pensar qual é o sentido de propriedade dentro de comunidades racializadas, qual que é o sentido de transmissão de bens na comunidade racializada”, diz.
A Hoa viveu, logo no começo de suas atividades, um momento dramático, impulsionado pelo interesse crescente do mercado em artistas racializados. “Muitos galeristas foram na abertura e eles pegaram os artistas que eles tinham descoberto dentro da Hoa”, diz. Ela afirma que perdeu várias amizades no processo.
Embora o burburinho do que está na moda nas artes circule bem pelos conhecedores entre brindes em vernissages, são as feiras que consolidam de fato o termômetro do mercado. No Brasil, a maior delas está nas mãos da advogada Fernanda Feitosa.
A SP-Arte, fundada pela carioca em 2005, no pavilhão da Bienal de São Paulo, no parque Ibirapuera, é inspirada nas feiras internacionais, caso da Art Basel e da espanhola Arco. Fez bem o fato de São Paulo contar com um ecossistema de galerias profissionalizadas, “acostumadas ao padrão internacional”, nas palavras de Feitosa. Ela cita as figurinhas carimbadas entre os participantes, Luisa Strina, Raquel Arnaud, a então Fortes Vilaça, Nara Roesler.
Antes da SP-Arte, a grande feira de São Paulo era realizada no clube Hebraica e reunia antiguidades e arte moderna. Mas, segundo Feitosa, faltava espaço para a arte contemporânea.
Segundo a empresária, a feira de arte, quando bem afinada, funciona como um pulso do mercado. “O que as pessoas gostam ali dá o sentimento do mercado”, diz Feitosa. E, se a feira é esse pulso, segundo Feitosa, a feira precisa traduzir tudo o que está surgindo. “Artista de rua, artista street art, grafite, artista indígena. Tudo, tudo. Quando chega ao museu, ele passou por esse filtro.”
A relação entre os fatores, porém, nem sempre é fácil. Além de ser um cabo de guerra de interesses, envolve uma mediação de tempos.
“O galerista não está lá para pacificar. Ele é um mediador, uma ponte. Se for para pacificar, o mercado sempre vai ser o lado mais forte e isso deixa o artista num lugar mais frágil do que ele já está. Estamos num mercado voraz, hostil”, diz Montero, da Sé.
A falta de incentivos nas instituições e a demora de assimilação também criam entraves. “Muita gente se queixa da promiscuidade porque galerias às vezes colaboram muito de perto com os museus e eles deveriam estar esterilizados, longe disso”, diz Feitosa.
“Mas não necessariamente, desde que implantadas regras contra o conflito de interesse. É fato que os museus precisam cada vez mais das galerias comerciais para fazerem seus programas, porque não têm dinheiro e aí a gente cai no problema das políticas públicas. Bom, se você não quer que a galeria ajude lá na Bienal, então acho que a Bienal precisa ter dinheiro para fazer, senão ela precisa pedir que a galeria banque o artista que o curador escolheu para estar lá.”
Os museus, vale mencionar, não são imagens de assepsia. O Masp, o Museu de Arte de São Paulo, tem Alfredo Setúbal, CEO da Itaúsa, como presidente do conselho deliberativo. Heitor Martins, sócio da consultoria McKinsey é presidente da instituição —e marido de Feitosa.
Os números, essa coisa tão feia perto de arte tão bela, se tornam uma questão até para colecionadores. Não que eles questionem o valor do que compram —isso, nunca—, mas a tributação acalora o debate. Yunes, a colecionadora e integrante do Pompidou, traz as taxas de importação como sua única crítica ao mundo da arte hoje.
“Esse protecionismo, isso é uma coisa horrorosa. As taxas são das mais altas do mundo, cerca de 80%, 90%”, diz ela. “Tem para todo mundo, tem para artista brasileiro, tem para artista chinês.” Ela diz que, quando compra uma obra de fora do país, o faz por amor. Em sua casa, são visíveis, como uma escultura de Ai Weiwei e uma pintura de Peter Zimmerman.
Feitosa faz coro. “A Fazenda tem que estabelecer um tratamento tributário favorável para a circulação de bens culturais, que apoie as galerias. As galerias são familiares, não são empresas. Elas têm que funcionar como empresa sem ser empresa.”
É um cenário que contribui para a ideia de que arte é para ricos, junto dos portões fechados, as vernissages frequentadas por nomes badalados da alta sociedade e os encontros extravagantes. Mas as galeristas se esforçam, em alguma medida, para mudar essa imagem. “No Brasil a gente sempre acha que é pouca gente que compra arte e que é uma coisa que é só gente muito rica que faz”, diz Luisa Strina. “E, não, tem estudante que compra. Divide em mil vezes, mas compra.”
[ad_2]
Fonte: Uol