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Ao sentir o frear do trem, levantei os olhos até então enterrados no livro e busquei através da janela o nome estampado na parede de azulejos brancos que me indicaria onde havíamos acabado de chegar. Ao encontrá-lo, me ajeitei no assento tornando a posição mais confortável. Restavam ainda seis paradas.
Retornei o olhar para o vagão cheio num lampejo de curiosidade cotidiana sobre aquele microcosmo em que estranhos se entrelaçam sem querer, mundos inteiros dentro de cada cabeça anônima, conectados apenas pelo tão indesejável quanto inevitável esbarrar de braços e pernas e pelo ar que entra e sai dos seus pulmões para ocupar os poucos espaços vazios. Examinei meu entorno sem me demorar em ninguém, até que, por trás de um mar de corpos, o meu olhar errante encontrou um par de olhos que me fitavam.
Sentado à minha frente estava um homem jovem, de roupa preta como 90% dos outros ocupantes do vagão. Seus cabelos (ou a ausência deles) ocultos debaixo do gorro também preto. Ao esbarrar com seus olhos em meu caminho, instintivamente abaixei a cabeça evitando contato visual, mas estávamos tão perto um do outro que pude sentir seu olhar ainda em mim.
Tentei retomar as páginas abandonadas no meu colo, mas era impossível me concentrar na história sabendo que estava sendo observada. Permaneci com o olhar fixo no mesmo parágrafo fingindo ler atentamente as palavras que se embaralhavam sob o fundo bege da página, enquanto sentia seu olhar queimar minha pele, insistente e incômodo.
Uma estação depois e percebendo que minha tática de fingir ignorância não havia gerado resultados, optei por uma estratégia mais direta, que não deixaria margem para interpretação. Resoluta, levantei os olhos e encontrei os seus ainda fixos em mim ao que respondi com uma clara expressão de reprovação acompanhada do movimento negativo com a cabeça.
Percebendo a minha negativa, sem tirar os olhos dos meus, ele sorriu. Um sorriso discreto, sem mostrar os dentes, nem vincar as laterais do rosto. Um sorriso que ninguém mais viu, mas que foi suficiente para transformar o meu incômodo em medo. E de repente parecia que não havia mais ninguém no vagão lotado, que estávamos ali apenas nós dois. De um lado, eu, coberta da cabeça aos pés. Do outro, aquele desconhecido cujo olhar me atravessava, perverso e impiedoso. Me sentindo nua, exposta a esse homem sem nome, recorri novamente ao livro, como um escudo protetor.
Ele ainda me olhava quando o trem chegou ao meu destino e tive que decidir entre sair e correr o risco de ser seguida ou ficar e correr o risco de presenciar o vagão se esvaziando ao nosso redor. Decidi arriscar, mas, por via das dúvidas, aguardei até o último segundo e levantei-me quando o barulho já anunciava o fechar das portas. Já do lado de fora, enquanto o trem começava a se mover, ousei olhar para o homem de preto uma última vez. O encontrei ainda sorrindo, com os olhos gelados apontados para mim e, num gesto final que fez minha alma estremecer, ele acenou com uma de suas mãos, como quem diz: até breve.
Saí da estação ainda inundada pelo medo, a adrenalina desses poucos minutos percorrendo cada milímetro do meu corpo. Andei apressada pelas ruas sentindo o vento frio tensionar ainda mais os músculos. Quão vulneráveis e desamparadas estamos que um homem precisa apenas de um olhar insistente e um sorriso desafiador para nos colocar em modo de alerta?
Enfiei a chave na porta de casa e, ao ver minha filha brincando no chão da sala, não fui capaz de conter as lágrimas. Que merda é ser mulher.
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Fonte: Uol