[ad_1]
Foi lançado mês passado no Netflix o filme “A Noite que Mudou o Pop”. Trata-se de um documentário sobre o encontro de grandes artistas do pop dos EUA em 1985 para a gravação da famosa canção “We Are the World”, composta por Lionel Richie e Michael Jackson.
Era para ser uma boa ação para ajudar os famintos da Guerra Civil da Etiópia, que aconteceu entre 1983 e 1985. O que poucos se lembram é que naquele mesmo ano de 1985 houve o “Nordeste Já”, iniciativa de artistas da MPB para ajudar os flagelados nordestinos.
Foi em maio de 1985 que o Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, na época capitaneado por Aquiles Rique Reis —cantor do MPB-4—, se juntou à Caixa Econômica Federal para gravar, lançar e distribuir um compacto com duas canções para ajudar os flagelados nordestinos. O disco teve tiragem inicial de 500 mil exemplares, que foram vendidos até setembro daquele ano.
O dinheiro arrecadado com o disco seria utilizado para a construção de praças, quadras polivalentes, teatros e creches nas áreas do Projeto Verde Teto, iniciativa pública da Caixa Econômica então já existente.
Capitaneados por Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, a gravação reuniu boa parte dos artistas do samba, da MPB e do então nascente rock nacional.
De um lado do compacto foi gravada a canção “Chega de Mágoa”. Apesar de creditada como “criação coletiva”, era na verdade um reggae de Gil, um dos diretores musicais do projeto. A letra de “Chega de Mágoa” era de Chico, Gil, Caetano, Erasmo e Roberto Carlos, Fausto Nilo, Fernando Brant, Milton Nascimento e Fagner.
Do outro lado do compacto foi gravada “Seca d´Água”, uma melodia de Fagner sobre letra de Patativa do Assaré.
Foram creditados na ficha técnica do disco quase 150 artistas. Estiveram presentes na gravação de Alceu Valença a Zizi Possi, de Alcione a Zé Ramalho, de João Nogueira a Golden Boys, de Raphael Rabello a Martinho da Vila, do MPB-4 a Kid Abelha.
É difícil dizer quem faltou, mas olhando bem a lista, vê-se a exclusão ou esquecimento de alguns artistas. Ao contrário do mestre Luiz Gonzaga e de nordestinos como Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Belchior, Dominguinhos foi esquecido. Apesar da presença de Elizeth Cardoso, cantores da velha guarda como Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto foram negligenciados.
Os sertanejos então em ascensão naquela década como Chitãozinho e Xororó, Milionário e José Rico e João Mineiro e Marciano tampouco foram lembrados. Cantores bregas como Amado Batista, Ovelha, Wando e José Augusto foram esquecidos.
Quase todos artistas da MPB foram lembrados, mas alguns não puderam estar presentes. Tom Jobim, com problemas dentários, apareceu mais tarde no estúdio para tocar piano, e ironizou a canção de Gil: “É preciso prestigiar o reggae”, disse o maestro soberano, que não foi clicado para a foto coletiva.
Jorge Ben, contumaz ausente de confraternizações, explicou estar em turnê. Apesar da ausência no disco, Ney Matogrosso cantou a canção no programa “Chico & Caetano”, especial global daquele ano, ao lado dos anfitriões e do roqueiro Paulo Ricardo.
Por sua vez, Milton Nascimento, que mandou sua participação por correio, quase foi excluído. Havia na época uma greve dos funcionários da estatal e por pouco sua participação não chegou a tempo.
Assim como mostra o documentário sobre o “We Are the World”, as gravações do compacto “Nordeste já” vararam madrugada adentro. E também houve a gravação de um clipe coletivo, que foi lançado no Fantástico, da TV Globo. Mas, diferentemente da inspiração americana, a versão brasileira não conseguiu unir os mais de uma centena de músicos num dia só, então alguns artistas gravaram em dias diferentes.
A comparação com a versão americana incomodava Chico Buarque, que disse ao Jornal do Brasil na época: “Não foi a gravação do ‘We Are the World’ que nos motivou, porque eles é que chuparam da gente. É tradicional nos juntarmos para shows”. Já a cantora Marina Lima não se intimidou em ser cópia dos americanos: “Estamos com o sentimento de dar as mãos e o movimento para a África mexeu com todo mundo. As pessoas estão menos individualistas”.
Outro que também não gostou da forma como parte da mídia tratou o compacto “Nordeste Já” foi Caetano Veloso. Bem a seu estilo verborrágico, Caetano atirou para todos os lados. Em uma coluna no Jornal do Brasil afirmou que “Nordeste Já” era de fato a versão brasileira de “We Are the World”, mas ao mesmo tempo disse que os americanos também eram uma cópia.
Afinal, a ideia de ajudar os famintos etíopes havia surgido no ano anterior na Inglaterra, quando roqueiros do quilate de Bono Vox, Boy George, Sting e George Michael, capitaneados por Bob Geldof, criaram a Band Aid, e cantaram juntos a canção “Do They Know It’s Christmas?”, cujos fundos foram destinados à flagelados africanos.
A ira de Caetano sobrou até para Rita Lee, que disse na época do lançamento que a versão brasileira deveria se chamar “We Are the Worst”, ou nós somos os piores, o que irritou o baiano.
“Não gosto deste humor, deste tipo de trocadilho ‘witty’ [espirituoso, espertinho, chistoso]. É um autodesrespeito. Não entendo. Quando seria preciso boa vontade de todo mundo, tivemos má vontade, vergonha, timidez”, disse o baiano contra Rita.
Em seguida Caetano mirou alguns críticos paulistas desta Folha. Contra Ruy Castro, Caetano defendeu “Chega de Mágoa”, que na sua opinião era melhor do que a versão inglesa.
Ruy Castro era um dos que ironizava o compacto nas páginas de Folha. Em 16 de maio, o jornal havia chamado o disco de “We Are the Nordeste”. Em 16 de setembro daquele mesmo ano, Ruy ironizou os artistas brasileiros ao dizer que “We Are the World” havia levado o prêmio de melhor clipe coletivo e que o clipe de “Chega de Mágoa” não tinha sequer sido cogitado.
Sobre a briga de Caetano com Rita, Ruy escreveu: “as únicas gracinhas que Caetano tem achado graça são as que ele mesmo faz”. Mas tudo acabou bem entre Rita e Caetano. O baiano colocou letra na canção “Nave Maria”, que Rita gravou no disco daquele ano ao lado do marido Roberto de Carvalho.
Quem procurou capitalizar com o sucesso de “Nordeste Já”, que dominou as paradas entre maio e julho de 1985, foi Roberto Carlos. Ele incluiu tanto “Chega de Mágoa” quanto “We Are the World” em seu show daquele ano no Maracanãzinho, o que incomodou o ranzinza Ruy Castro. O colunista ironizou Roberto ao dizer que ele estava querendo ser o “rei do mundo”, ampliando seu reinado do Ceará à Etiópia, ao cantar “numa língua parecida com o inglês”.
O objetivo do compacto “Nordeste Já” era arrecadar fundos para o Nordeste, mas também forjar alternativas fora da indústria fonográfica. Insatisfeitos com as grandes gravadoras da época, os artistas da música buscavam novos caminhos na então recente democratização.
Esperava-se que “Nordeste já” abriria um filão para a música independente através da ajudinha estatal. Os LPs eram numerados e vendidos somente nas cerca de 2 mil agências da Caixa Econômica Federal, de forma a escapar às cadeias de produção e divulgação das tradicionais gravadoras e lojas de discos.
O lançamento contou com as bênçãos do presidente José Sarney, que recebeu os artistas em Brasília em 12 de junho e mostrou-se especialmente tocado com a presença de Fafá de Belém, então conhecida como a “musa das Diretas Já”, a quem beijou afavelmente no rosto.
Tempos depois, em maio de 1987, o novo diretor do sindicato, o músico Maurício Tapajós, informou que o dinheiro arrecadado foi usado em um centro comunitário em Oeiras, no Piauí, outro em Igarassu, em Pernambuco, e ainda outro em Janduís, no Rio Grande do Norte. Havia ainda centros planejados para os municípios de Várzea, também no Rio Grande do Norte; Ilhéus, na Bahia; Barras, no Piauí; Viçosa, no Alagoas; Carutapera, em Manaus; Russas, no Ceará; e Catolé do Rocha, na Paraíba.
Também tocado pelo flagelo nordestino daquele ano, o humorista cearense propôs à TV Globo a criação do programa SOS Nordeste, que teve duração de quatro horas e participação de vários artistas pedindo ajuda para as vítimas da seca. Em 1986, a Rede Globo rebatizou a campanha de Criança Esperança e tornou-a anual.
“Nordeste Já” fundou um padrão de ação benevolente de mídia massiva que vigora até hoje.
[ad_2]
Fonte: Uol