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Imagine viver uma vida onde tudo é interessante. Quando virei amigo do Tony, o Tony Goes que muitos conhecem desta Folha, mas que para os amigos era apenas Tony, fiquei encantado com as possibilidades de uma amizade com um cara que levava a vida assim.
Éramos dois garotos que tínhamos o mesmo apetite de cultura e cursávamos as mesmas faculdades —publicidade pela manhã e administração pela tarde, embora em classes diferentes. Nessa coincidência, identificamos as possibilidades de todas as outras afinidades que viriam.
A primeira delas, claro, foi a música. Depois Tintim. Mas uma coisa de cada vez.
No início da década de 1980, se você gostava de sons alternativos, era praticamente impossível escapar da new wave. Nada era mais moderno do que as capas dos dois primeiros álbuns do The B-52’s, do que os singles do Blondie, ou do que Chrissie Hynde, do Pretenders, cantando “I’m the adultress, but I didn’t want to be”. Tony me apresentou tudo isso.
Os dois anos e meio que ele tinha a mais mais que eu —e essa diferença conta quando você tem menos de 20— não formaram um obstáculo. Iniciamos uma conexão forte que, para além da cumplicidade, trouxe junto uma maravilhosa competição de quem mostrava uma coisa mais diferente e interessante para o outro —na música, no cinema, nas artes, no mundo.
Nem preciso dizer que, 44 anos depois, essa disputa se encerra sem vencedores. Tony morreu na manhã desta quinta-feira em decorrência de um câncer. Depois de um penoso tratamento, sua saúde piorou vertiginosamente na semana no Carnaval.
“Ele já estava de saco cheio, incomodado”, me escreveu seu irmão e também amigo Zico Goes. “Nem acredito que estou escrevendo isso.” Nem nós, amigos e leitores, acreditamos que estaríamos lendo uma notícia dessas.
Mas ela veio e assim me vejo na inusitada posição de me despedir desse amigo imenso, que, conhecendo seu humor —frequentemente, mas nem sempre— mordaz, não hesitaria em brincar que, partindo hoje, estaria só tentando esticar as cinzas da quarta para a quinta, como se pudesse alongar um feriado, para marcar seu adeus.
Tento fazer graça com essa situação porque é exatamente o que ele faria. Tony era o primeiro a tirar um sorriso nosso quando perdíamos um amigo precocemente. Mas me vejo, por enquanto, incapaz de reproduzir tal feito com a exata dose de ultraje e humor que era tão peculiar a ele.
Melhor lembrar as risadas que demos juntos. Como aquelas que vieram quando descobrimos nossa paixão mútua por Tintim, o grande personagem de quadrinhos criados pelo belga Hergè.
Ríamos de Bianca Castafiore cantando “eu rio de me ver tão bela nesse espelho”, das indignações tolas dos irmãos Dupont e Dupond, dos tombos de Milú, dos vitupérios de Haddock —que nos fazia gargalhar mesmo quando não falava nada, como na sequência impagável, na saga do rumo à Lua, quando ele tenta se livrar de um esparadrapo.
Uma das últimas mensagens que troquei com Tony no WhatsApp foi justamente a imagem de Tintim descansado no deque de um navio, desejando a ele um bom repouso. Não tive coragem de mandar a que tinha escolhido primeiro —a do nosso herói subindo num avião dizendo “au revoir”, tchau.
Talvez ele tivesse se divertido com isso. Tony se divertia com tudo. Com as operetas de Freddie Mercury, seu ídolo maior, com os absurdos do “ítalo disco” —ele tinha programado de ver Amanda Lear em Paris no fim deste mês—, com as caricaturas brilhantes de Patrício Bisso, assunto de sua primeira peça, que estreou recentemente no Rio, “Quem Tem Medo de Olga Del Volga?”.
“As monas passam, só Picasso dura”, cantava Bisso em “Louca pelo Saxofone” na década de 1980 —e nos fazia rir, uma graça que atravessou décadas. Gargalhamos com Felipe Pinheiro e Pedro Cardoso e com tudo que era besteirol, com “Quem Tem Medo de Itália Fausta?”, com “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, com “Seinfeld”, com Tata Werneck ainda no “Trolalá”, com os roteiros de “Vídeo Show” que fizemos, no único projeto em que de fato trabalhamos juntos, em 2013 e 2014, com “Fleabag” e com o Porta dos Fundos.
Nenhuma dessas referências, no entanto, me inspira a soltar uma piada inesperada, quando não desconcertante, como ele costumava fazer. Pelo menos por enquanto, o que tenho a dizer sobre sua despedida é o bordão de Jesse, o personagem chapado de “Breaking Bad”, a série que Tony considerava a melhor de todos os tempos. “Seriously?”
Prefiro celebrar sua curiosidade infinita, da qual fui testemunha desde que viajamos juntos pela primeira vez, em 1983. Chegando a uma Londres gelada, hospedado no para lá de decadente hotel Trebovir, em Earl’s Court, nos divertíamos perguntando genuinamente quem era aquela cantora que havia ganho todos os prêmios de melhor cantor pela música que ainda não tínhamos ouvido, “Do You Really Want to Hurt Me?”. Inocentes.
Era marca sua, desde essa época, usar uma expressão em francês que traduzia perfeitamente sua vontade de tudo conhecer —”il faut y aller”, como quem diz, “é obrigatório ir a tal lugar para conhecer”. Nessa missão, ele era voraz.
Testemunhei isso nos safáris que fizemos na Namíbia, numa noite de Natal embriagados em Marrakech, vendo ele se vestir a caráter em Luang Prabang, no Laos, dançando num cabaré em Pigalle, em Paris. Ou bebendo numa degustação de vinhos do Porto em Amares, em Portugal, onde ele ganhou mais um apelido, Tawny. Ou ainda caminhando contra a vontade numa praia ensolarada em Alagoas, se deslumbrando no castelo Cheverny, na França, que inspirou a mansão onde Tintim morava.
Não por coincidência, foi o próprio Tintim que rendeu a ele seu primeiro texto nesta Ilustrada. Em 1º de janeiro de 1989, quando então eu era editor-assistente deste caderno, convidei Tony a escrever um breve texto sobre o personagem, quando ele comemorava 60 anos. E cometi a ousadia, em tempos de um rígido Manual de Redação, de o chamar de “Tintinólogo”.
Seu gigante conhecimento de cultura pop, no entanto, ia bem além disso, e certamente foi decisivo para construir sua carreira, para o deixar à vontade para escrever sobre o que as pessoas estavam ouvindo, vendo, falando ou daquilo que estavam rindo.
Após longos e bem-sucedidos anos na publicidade, Tony partiu, em meados dos anos 2000, para um trabalho mais autoral —sua grande vocação. Fez roteiros de cinema, esquetes, escreveu para mais de um programa de TV e finalmente se encontrou como colunista, com um equilíbrio delicado entre a observação e a provocação, primeiro na internet, depois no jornal.
Tony foi pioneiro também dos blogs com conteúdo diferenciado, onde sempre misturou cultura pop e anedotas pessoais com humor e perspicácia, imprimindo ainda um tom firme e inovador nas pautas do universo LGBTQIA+ quando o espaço para isso ainda era pequeno.
Seu marido de mais de 30 anos o acompanhou em boa parte dessa jornada, com quem dividia sua paixão pelas artes e, acima de tudo, o cinema. Não me espantaria se ele, nos próximos dias, dividisse com os amigos uma lista de palpites do Tony para o Oscar. Tenho certeza de que ele fez uma, e de que a grande maioria de seus palpites vai estar certa.
Para quem gosta do mundo, como Tony gostava, as coisas não se acabam. Sua falta será sentida, teremos saudades da informação que ele escolhia nos passar, das suas opiniões prontas para abrir uma discussão, da sua irreverência da qual muitas vezes nos arrependíamos em atiçar e, enfim, de sua risada.
Talvez por uns dias tudo fique um pouco menos interessante para nós que gostávamos tanto dele. Se uma pessoa como Tony já era rara naquela época em que nos conhecemos, imagine como uma mente criativa, ávida e diversa fará falta agora.
Para aqueles que, como eu, ainda ficarão perplexos com sua morte por um bom tempo, encerro com a frase que encerra o filme de Pedro Almodóvar do qual Tony mais gostava, “Fale com Ela”. Fica melhor na voz de Geraldine Chaplin, que brilha no elenco, mas nem por isso deixo de repetir essas palavras na minha cabeça, como se elas tivessem um poder maior de confortar —”nada é simples”.
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Fonte: Uol