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Bob Marley estava em estúdio gravando “Uprising” —aquele que viria a ser seu último álbum lançado em vida— quando recebeu um convite para lá de irrecusável de Ramón Segura, diretor geral da Ariola Records: participar da festa de lançamento da gravadora alemã no Brasil.
Torcedor apaixonado da seleção à época tricampeã do mundo, o cantor jamaicano, então com 34 anos, nem pensou em recusar o convite. “Rivelino, Jairzinho, Pelé… A Jamaica gosta de futebol por causa do Brasil”, explicaria, dias depois, já em solo brasileiro.
Convite aceito, um dos maiores nomes do reggae de todos os tempos embarcou em Port of Spain, em Trinidad e Tobago, rumo ao país do futebol. Marley não veio sozinho. A bordo de um jato particular fretado pela Island Records, gravadora jamaicana fundada em 1959 que, hoje, pertence ao acervo da Universal Music, vieram, também, o guitarrista Junior Marvin, da banda The Wailers, o cantor Jacob Miller, do grupo Inner Circle, o executivo Chris Blackwell, fundador da Island Records, e a sua mulher, a atriz e modelo Nathalie Delon.
E a comitiva seria ainda maior se o cantor e compositor Barry Manilow, também convidado para prestigiar o evento, não tivesse mudado de ideia na véspera do embarque.
Segundo Marco Mazzola, o fundador da Ariola Discos no Brasil, o voo de Bob Marley teve duas escalas: uma em Manaus, outra em Brasília, ambas para reabastecimento.
No livro “Ouvindo Estrelas —A Luta, A Ousadia e a Glória de Um dos Maiores Produtores Musicais do Brasil” (Editora UBK, 2007), Mazzola conta que, em Manaus, os militares desconfiaram daquelas “figuras estranhas” e pediram explicações sobre o motivo da viagem.
Depois de algum tempo, liberaram seus passaportes, mas não concederam vistos de trabalho. “Isso nos causou muita frustração”, admite Mazzola. “Tanto nós quanto eles sonhávamos com uma ‘jam’ [improvisação] na festa de lançamento”.
Por volta das 18h30 de terça-feira, 18 de março de 1980, a aeronave pousou no Rio de Janeiro. No saguão do aeroporto Santos Dumont, Bob Marley —vestindo uma boina de tricô chamada de tam— falou da vontade de conhecer Gilberto Gil.
Em agosto de 1979, Gil tinha lançado “Não Chore Mais”, sua versão para “No Woman, No Cry”, um dos maiores hits do repertório do artista jamaicano. “O reggae tem a mesma raiz, o mesmo calor e o mesmo ritmo do samba”, declarou aos repórteres. Do aeroporto, Marley e sua comitiva seguiram para o Copacabana Palace.
Fanático por futebol, Bob Marley não era torcedor de um clube só. Na Jamaica, o menino que aprendeu a jogar bola nas ruas de Trenchtown, bairro pobre de Kingston, a capital do país, torcia pelo Boys Town. Mas, na Inglaterra, seu “time do coração” era o Everton, na Escócia, era o Celtic e, no Brasil, o Santos.
Na quarta, dia 19, dia seguinte à chegada no Rio, o rei do reggae ganhou de presente de Pelé, o rei do futebol, uma camisa 10 do time da Vila Belmiro.
Em sua visita ao Rio, Marley realizou outro sonho: conhecer Paulo Cézar Lima, também conhecido como Paulo Cézar Caju, companheiro de Pelé na seleção que conquistou a Taça Jules Rimet no México, em 1970.
“O futebol fazia tanto parte da vida de Bob Marley quanto a música”, afirma o biógrafo Gerald Hausman, organizador da antologia “O Futuro É O Começo” (Editora BestSeller, 2013). “Adorava acordar cedo para correr e jogar bola. Quando estava em campo, sentia-se revigorado.”
Na única vez em que esteve no Brasil, Bob Marley não entrou em estúdio ou subiu ao palco. Mas, boleiro incorrigível, não abriu mão de mostrar seus dotes como jogador.
A “pelada” foi marcada para o Centro Recreativo Vinícius de Moraes, no quilômetro 18 da Avenida Lúcio Costa, antiga Sernambetiba, no Recreio dos Bandeirantes. É lá que funciona, até hoje, o estádio do Politheama, o time de futebol do cantor e compositor Chico Buarque que, reza a lenda, nunca perdeu uma partida oficial.
“Politheama era o time de botão do Chico, azul e verde, que ele fundou aos 15 anos”, explica a jornalista Regina Zappa, autora das biografias “Chico Buarque: Para Todos” (Ima Editorial, 1999) e “Chico Buarque —Para Seguir Minha Jornada” (Editora Agir, 2011). “Depois, foi promovido a time de futebol de verdade. No grego, Politheama significa: muitos espetáculos.”
‘Sou passarinho, não ornitólogo’
Ao contrário de Bob Marley, que torcia por diferentes clubes, Chico Buarque é torcedor de um time só: o Fluminense —paixão que herdou da mãe, Maria Amélia. Mas, os dois, Marley e Chico, têm algo em comum: sempre que saem em turnê, dão um jeito, antes ou depois dos shows, de bater uma bolinha com seus músicos ou membros da equipe técnica.
Certa vez, na falta de um campinho de futebol e de um time adversário, Chico e alguns integrantes de sua banda, como o percussionista Chico Batera, improvisaram uma troca de passes e uns chutes a gol no corredor de um hotel em Brasília.
Mas Chico não gosta apenas de jogar futebol. Também gosta de assistir aos jogos pela TV e, de quando em quando, ser cronista esportivo —em 1998, na Copa do Mundo da França, escreveu uma coluna para o jornal O Globo.
Até criar um jogo de tabuleiro sobre futebol, Chico Buarque já criou o Ludopédio, em 1969, pela Grow. A única coisa de que ele não gosta é teorizar sobre futebol. “Sou passarinho, não ornitólogo”, costuma dizer, citando o escritor chileno Antonio Skármeta.
Desde que o Politheama foi inaugurado, em 1979, Chico e outros “peladeiros” assumidos, como o cantor Carlinhos Vergueiro e o produtor e empresário Vinícius França, costumavam se reunir três vezes por semana —às segundas, quintas e sábados— para jogar bola.
Indagado sobre quem seria o “craque” do Politheama, Carlinhos Vergueiro diz que não gostaria de cometer injustiças. “O Politheama é, antes de tudo, um time. O entrosamento favorece as individualidades”, filosofa.
Naquela tarde, o Politheama ganhou alguns reforços: Toquinho, Moraes Moreira e Alceu Valença, todos recém-contratados pela Ariola. Bob Marley chegou às 15h50. “Para minha tristeza, não compareci a esse evento histórico”, lamenta Vinícius França. “Estava prestando exames finais na PUC”.
Um craque entre os peladeiros
Evandro Mesquita compareceu, mas chegou atrasado. Estava na praia com Regina Casé e Patricya Travassos, acertando os últimos detalhes de um ensaio do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, quando Paulo Cézar Lima o convidou para jogar bola.
“O Bob Marley tá na casa do Chico e quer jogar com a gente. Bora lá?”, perguntou PC. Evandro quase caiu para trás. “No começo, as duas estranharam. Mas, como sabiam da minha paixão pelo Bob Marley, me liberaram”, diverte-se o líder da Blitz.
À beira do campo, Evandro demorou a entrar. Nenhum dos jogadores, por mais cansado que estivesse, queria ceder a vaga.
Faltando uns dez minutos para o apito final, a bola escapuliu pela lateral, Evandro fez umas embaixadinhas e a devolveu, com estilo, para Bob Marley. “Yeah, man! Very nice!”, exclamou, sorridente, o jamaicano. “Nice to meet you, man!”, retribuiu Evandro, encabulado. “I love your music!”. “Bob Marley era lindo, gentil e maravilhoso. Um gigante, bem ali na minha frente”, derrete-se o roqueiro.
Dos “jogadores” em campo, o único profissional era mesmo Paulo Cézar Caju —na época, ele defendia as cores do Club de Regatas Vasco da Gama. Todos os demais eram “peladeiros”. Caju, aliás, não foi o único jogador profissional a marcar presença no Politheama —Zico, Júnior e Romário, três dos mais famosos, já entortaram muitos marcadores e fizeram alguns golaços por lá.
Na hora de montar os dois times, porém, faltou jogador. Foi quando tiveram a ideia de convocar, às pressas, alguns funcionários da Ariola e até o jornalista João Luiz de Albuquerque. “Free lancer”, João Luiz fora contratado pela Ariola para escrever o discurso do diretor, Marco Mazzola, apresentando a gravadora para a indústria fonográfica e a imprensa.
Bom de bola ou perna de pau?
Segundo o jornal O Globo, de 20 de março de 1980, a “pelada” teria durado apenas 20 minutos —”dadas as condições físicas dos ‘atletas'”, enfatizou o repórter.
Toquinho, um dos “craques” do jogo, nega essa versão. E, esbanjando modéstia, acrescenta: “O melhor em campo? Ora bolas, fui eu! Joguei muito naquele dia”, afirma, categórico, antes de soltar uma risadinha marota.
E o que dizer de Bob Marley com a bola nos pés? “Muito ruim”, resume o eterno parceiro de Vinícius. A opinião de Toquinho é compartilhada por Evandro. “Era esforçado, mas os jamaicanos eram meio duros”, analisa.
Carlinhos Vergueiro discorda: “Jogava muito bem”. Controvérsias à parte, o amistoso terminou três a zero —gols de Bob Marley, Paulo Cézar Caju e Chico Buarque.
Durante a visita de Bob Marley ao Rio, Paulo Cezar Caju realizou dois desejos do cantor: comer peixe cru —o dono de um restaurante no Baixo Leblon, muito amigo do jogador, descolou uma bandeja de sashimi— e tomar suco de frutas.
“Viemos andando pela Visconde de Pirajá e paramos numa lanchonete”, recorda o jogador na biografia “Dei a Volta na Vida” (A Girafa, 2006), referindo-se a uma das principais ruas de Ipanema. “Aí, misturamos manga, abacaxi, melão e mamão e ele tomou tudo na hora”.
Um rei no Rio de Janeiro
Na quarta à noite, Bob Marley, Marvin Júnior e Jacob Miller subiram o Morro da Urca, na Zona Sul do Rio. Chegaram por volta das 22h15. “Marley chegou como um rei. Fumou baseados, tomou guaraná e ficou louco com o visual do Rio”, observou o jornalista e escritor Nelson Motta no livro “Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais” (HarperCollins, 2000).
O astro da noite trajava calça jeans e camiseta azul. Adepto da religião rastafári, não consumiu bebida alcoólica.
A casa de shows Noites Cariocas, no Pão de Açúcar, foi a escolhida para sediar a festa de inauguração da Ariola. O primeiro lançamento da gravadora no Brasil foi o álbum “Um Pouco de Ilusão”, de Toquinho & Vinícius.
Entre os mais de mil convidados, grandes nomes da MPB, como Ivan Lins, Simone e Marina. O show de Moraes Moreira começou às 23h20, com direito à participação de Baby Consuelo.
Na manhã seguinte, uma coletiva de imprensa, prevista para começar às 11h30, foi cancelada. Motivo: o voo de volta, segundo os jornais da época, tinha sido antecipado.
Na bagagem, o astro jamaicano levou mil dólares em material esportivo e alguns instrumentos musicais, como cuíca, atabaque e maracas, que comprou em uma loja de Copacabana.
Houve quem especulasse que, em setembro, ele voltaria para um festival de reggae no Maracanãzinho. Festival esse que acabou não acontecendo. No dia 11 de maio de 1981, quase um ano e dois meses depois de sua visita ao Rio, Bob Marley morreu, vítima de câncer, aos 36 anos.
Matéria originalmente publicada em 11 de maio de 2021
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Fonte: Uol