[ad_1]
Exilado na Argentina nos anos 1970, Augusto Boal mirava um ideal para a civilização latino-americana. Ele pensava como seria justa uma lei que proibisse qualquer argentino de passar fome. Assim, o diretor teatral e dramaturgo, morto em 2009, arregimenta sua trupe para um lauto almoço, num restaurante de Buenos Aires. Sem dizer que encenava uma peça, o grupo se refestela com iguarias e bebidas. Logo que o garçom cobra a conta, todos se rebelam alegando a existência da suposta lei.
Um barraco se forma no estabelecimento, e o quebra-pau entre atores e garçons enseja a peça proposta pelo criador do Teatro do Oprimido, método mundialmente conhecido por denunciar as desigualdades sociais. O ímpeto revolucionário de Boal ganha agora novos matizes, com o livro “Augusto Boal: Teatro Reunido”, lançado pela editora 34.
São 14 textos escritos pelo dramaturgo, concebidos entre a década de 1950 até os anos 2000. A obra tem clássicos como “Torquemada”, de 1971, apropriadas pelas novas gerações de diretores para o contexto político atual, e quatro peças inéditas, criadas para o Teatro Experimental do Negro, o TEN, que mostram o interesse do autor pela cultura afro-brasileira.
A descoberta foi realizada graças ao trabalho do pesquisador Geo Britto, que localizou os textos esquecidos no fundo Miroel da Silveira, hoje incorporado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo.
“O pensamento marxista de Boal não separa as questões de raça e de gênero da luta de classes”, diz Britto, lembrando a relação tensa que Boal mantinha com o PCB. Tampouco esse homem de teatro separava a realização teatral da prática política.
Para a sua formação, o encontro com Abdias do Nascimento, fundador do TEN, é decisivo. Boal encontra o ativista, pela primeira vez, no Vermelhinho, um bar na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, justo quando havia completado a maioridade.
Por intermédio de Nelson Rodrigues, Nascimento se torna seu mentor intelectual, sensibilizando-o para a histórica questão racial do país. As reuniões passam a ser frequentes, muitas vezes realizadas na casa da atriz Léa Garcia, morta em agosto, que integrava a companhia.
Boal frequenta terreiros de candomblé, adquirindo conhecimento sobre as religiões de matriz africana. Nos anos 1950, o TEN tinha o objetivo de incluir o ator negro nos palcos brasileiros. Para tanto, precisavam de um repertório original. Nesse sentido, Nascimento encomenda a Boal os datiloscritos, agora localizados e publicados no livro.
Em “O Logro”, de 1952, o dramaturgo torna seus personagens mais complexos, explorando as incorporações do candomblé. Jerônimo corresponde a Xangô, enquanto Bárbara representa Iansã. Na trama, o casal tenta recuperar a reputação de um terreiro, que havia caído em descrença. Dois anos depois, “O Cavalo e o Santo”, um drama em cinco fragmentos, conta a história de Marina, menina negra que desejava pintar o cabelo de loiro.
A peça é liberada para encenação com cortes, feitos pela censura que prejudicam a compreensão da trama. No caso de “Filha Moça”, de 1956, o veto é total. A censura considerou um atentado à moralidade a trama em que uma jovem negra manifesta o desejo de sair da casa dos pais para morar com o namorado. Finalmente, em “Laio se Matou”, concebida dois anos depois, Boal faz seu experimento mais radical. Ele conta os antecedentes da tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles, unindo o misticismo africano à mitologia grega.
“A técnica do Teatro do Oprimido é bem mais conhecida do que as peças escritas pelo meu pai”, diz Julián Boal, filho do dramaturgo e um dos coordenadores da Escola de Teatro Popular. “Quem não conhece esses textos pode simplificar a prática que ele desenvolveu.”
Todas as criações para o TEN estão reunidas na segunda parte do livro. Na terceira, aparecem outros três textos inéditos, sendo “Suave Canção”, também do período de aprendizagem de Boal, que estudou teatro, nos Estados Unidos, com John Gassner. Já “Herança Maldita” e o “Amigo Oculto” já datam do século 21. Entre os dois períodos, Boal cria uma linguagem artística própria e paga o preço por sua militância política.
Nascido e criado na Penha, no subúrbio carioca, Boal inicia uma revolução no teatro brasileiro, propondo os seminários de dramaturgia no Teatro de Arena, em São Paulo, onde valoriza o repertório brasileiro. Inspirado pelo alemão Bertolt Brecht, ele faz, nos anos 1960, um teatro político, alicerçado num raciocínio dialético e pedagógico.
Em 1964, ele dirige o célebre show “Opinião” e, em seguida, dá forma, com Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, ao ciclo “Arena Conta” —”Arena Conta Zumbi”, “Arena Conta Tiradentes” e “Arena Conta Bolívar”. Em 1971, é preso e exilado, primeiro na Argentina, depois em Portugal e na França, só retornando ao Brasil em 1984, com a Lei da Anistia. Nesse ínterim, Boal sistematiza suas ideias ao lançar o livro “Teatro do Oprimido”.
A técnica consiste num conjunto de jogos e exercícios, como aquele feito num restaurante em Buenos Aires, em que as classes subalternas são protagonistas e tomam consciência da opressão sofrida. Ao redor do mundo, a obra de Boal ganha novos significados, a depender do contexto político. Na Argentina, o premiado diretor Diego Rodriguez quer completar uma trilogia de peças escritas pelo autor brasileiro, com a vitória do ultraliberal Javier Milei nas eleições presidenciais.
Em 2014, o diretor encenou “As Aventuras de Tio Patinhas”, sobre a dependência da América Latina em relação aos Estados Unidos e, seis anos mais tarde, “Torquemada”, que denuncia a prática de tortura pelas ditaduras que, nos anos 1970, dominaram o continente. Na ocasião, Rodriguez propôs adaptações ao texto. Na montagem, os presos políticos não liam seus diários, mas usavam o Twitter.
“Os mecanismos mudaram, mas a opressão é a mesma”, diz. O próximo passo, ele conta, é encenar “Revolução na América do Sul”. “Nosso continente ainda é o quintal dos Estados Unidos e da Europa. Aqui na Argentina as pessoas não conseguem dormir com tanta inflação, isso é uma forma de tortura.”
[ad_2]
Fonte: Uol