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Militar politicamente consiste principalmente em distribuir punições por falhas morais, em açoitar pecadores. Assim, viramos todos lobos de alguma alcateia, mesmo quando nos cremos únicos, singulares, de cabeça aberta e independentes.
A transformação digital da política há de ter um papel nisso. Os vários ambientes sociais digitais assemelham-se a um enorme e sortido supermercado de causas, agendas, doutrinas, ideologias e sentimentos de ultraje e indignação dos quais cada um se serve conforme seus interesses. A consequência disso foi um notável aumento no número de pessoas envolvidas em política nos últimos dez anos, assim como uma forma associativa que tende a formar grupos com afinidades muito estreitas, que recompensam pela reação mais imediata, mais indignada e mais radical. Em um ativismo em que há mais fúria do que substância, o resultado é fragmentação, sectarização e radicalismo em uma intensidade sem precedentes.
O que nos move às expedições punitivas são, invariavelmente, os princípios, mas também cálculos de recompensas psíquicas. Aqueles mais fervorosos nas causas, ideologias e nos seus princípios são frequentemente os mais dedicados a uma busca obsessiva por erros, pecados e deslizes alheios. Punir os transgressores torna-se uma forma consistente de valorizar nossa posição no grupo e reforçar nossa autoestima. Identificar e punir as falhas dos outros é uma maneira de demonstrar, tanto para os outros quanto para nós mesmos, como somos virtuosos e moralmente superiores.
Essa obsessão não poupa ninguém, nem mesmo líderes tribais como o velho Lula. Na última semana, jornais, revistas, sites de notícias e, sobretudo, suas vitrines nas redes sociais estamparam manchetes que, em essências e com poucas variações, diziam que Lula havia declarado a uma jovem negra que afrodescendentes gostam de batuque. No momento em que, no universo da informação política, título é tudo e conteúdo é quase nada —porque quase ninguém lê o que está depois do link e quando o faz a sua leitura é completamente dominada pelo título e pela ilustração—, Lula praticamente teria enviado a moça de volta para a África do século 16. Absurdo!
Identificado o pecado, pune-se o pecador: bolsonaristas e identitários convergiram nisso. Os primeiros, porque essa categoria de fala de Lula serve perfeitamente à estratégia deles de mostrar que Lula é racista, machista, misógino e transfóbico, porém que ninguém fala nada porque Lula é Lula, mas se fosse com Bolsonaro… Já os identitários atacam porque, claro, todo pecado precisa ser castigado.
O elemento sempre intrigante nessas punições é que os fatos não importam. Lula há de ter muitos defeitos, e certamente disse e fez muitas coisas cujas explicações são ainda devidas, mas acusá-lo de racismo? Francamente! Mesmo assim, a jovem envolvida poderia ter se sentido ofendida. Foi isso o que aconteceu? Jornalistas que se deram ao trabalho de investigar ouviram dela que não apenas não se sentiu ofendida, mas, ao contrário, ficou muito satisfeita. Enfim, pode-se sempre alegar que Lula não é racista, mas a frase era. Pode acontecer, mas é o caso?
Lula começa se dirigindo às “meninas e meninos” dizendo que “precisam se qualificar para enfrentar esse mundo maluco da inteligência artificial”. Depois, volta-se à garota, toma-a pelo braço com gentileza e a apresenta ao público: “Essa menina bonita que tá aqui, eu tava me perguntando, o que faz essa moça sentada, que eu não ouvi ninguém falar o nome dela, eu falei ‘ela é cantora, ela vai cantar’. Aí perguntei. ‘Não, não vai ter música’. ‘Então ela vai batucar alguma coisa? Porque uma afrodescendente assim gosta de um batuque, de um tambor’. ‘Também não’. Eu falei ‘Nossa, então ela é namorada de alguém’. ‘Também não é’. O que que é essa moça? Essa moça foi premiada como a mais importante aprendiz dessa empresa e ganhou um prêmio na Alemanha”. E continua: “É isso o que nós queremos fazer com as pessoas neste país. Nós anunciamos esta semana uma política para o ensino médio”. O que tem de racismo nisso? Não vi.
O texto integral está lá, em todos os jornais e vídeos, mas as pessoas ficam nas chamadas. Para que ir ao conteúdo? No título há tudo de que precisamos para faturar no mercado de virtudes. Uma frase pinçada basta para o ritual de desmascaramento público. Dessa forma, o militante moral ganhou o dia. Afinal, ao repudiar o ato, ele demonstra, de maneira inequívoca, que possui mais virtudes até do que o presidente Lula. Saciado, o ego repousa, feliz e enorme.
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Fonte: Uol