[ad_1]
O primeiro corpo desfigurado de “O Mal que nos Habita” aparece em menos de cinco minutos de filme, uma cena chocante por dois motivos. Para começar, é um torso inferior com duas pernas no meio de uma clareira, cortado como por uma serra na altura do quadril —ou seja, conclui um personagem, impossível a mutilação ser obra de um animal.
O segundo motivo é que a situação acontece no interior da Argentina, numa história protagonizada e produzida por gente de lá. Uma mutilação assim, com as tripas expostas sem muita cerimônia, é tudo aquilo que o brasileiro não espera do vizinho em uma sala de cinema.
Os filmes argentinos há anos têm lugar de honra nas salas brasileiras, servindo a tese de alguns de que seriam superiores à produção nacional. Uma tese para lá de vira-lata, que desconsidera a diversidade dos dois países e se alimenta de um desejo por dramas nobres, com cara de bem produzidos. Coitado de Ricardo Darín, ator-fetiche de uma geração de cinemas que mais lembram um bistrô.
Este bom-mocismo passa longe de “O Mal que nos Habita”, ainda que ele —como o título sugere— esteja ali nas entrelinhas das cenas mais putrefeitas do filme de Demián Rugna. A trama, se vamos ser justos, tem algumas intenções com o estado atual da Argentina, mesmo que saindo meses antes da vitória nas urnas do presidente Javier Milei.
A questão é que o longa vive da alienação coletiva dos personagens, que da noite para o dia precisam lidar com uma possessão. O tal corpo descoberto no início pertencia a um mercenário contratado para se livrar de um dos habitantes, que está há um ano com o demônio.
Os vizinhos descobrem a situação com o morto e, depois de atestar que o Estado fará nada por eles, resolvem se livrar do possuído sozinhos.
Se tratando de um filme de terror, pode-se imaginar que o plano dá errado, e o mal, antes contido em uma pessoa, se alastra por toda a comunidade. Os protagonistas, dois irmãos que acompanhamos desde o começo, resolvem então fugir para salvar a si mesmos e suas famílias, outro plano que logo se revela uma enrascada.
Assim, registrando uma ideia ruim atrás da outra, o diretor lida com a recusa de todos em assumir responsabilidade sobre os eventos. A situação só piora perante as ações dos personagens, que se revelam egoístas de primeira linha —com direito a briga de divorciados, quando um deles vai buscar a família.
Se você tirar a assombração da equação, a situação não é muito diferente da vivida pelos argentinos. O país emenda uma crise atrás da outra desde o fim dos governos de Néstor e Cristina Kirchner, em planos de governo que vão e voltam da direita ultraliberal. Aos olhos de Rugna, a recusa é o principal motor do desastre maior que movimenta o país.
O mais intrigante de “O Mal que nos Habita” é o horror, porém, e como ele se apresenta ao público. A violência, em si, pouco se difere da que se vê em outras obras recentes do gênero —em especial as americanas, o que lembra que o longa é uma coprodução americana. Mas ela acontece às claras, sem hesitação por parte da câmera, evitando o suspense em favor do impacto.
Ajuda também a disposição de Rugna a criar situações nauseantes. O possuído do começo, por exemplo, é um homem com obesidade mórbida que sofre com o diabo na pele, cheia de feridas e um inchaço de pus. Com uma visão dessas, dá para entender quando ele implora aos vizinhos que o matem —mesmo que seja um ardil do tinhoso para se libertar dali.
A adesão ao gore nessas horas lembra muito os trabalhos mais inspirados de Lucio Fulci, mestre italiano que inspirou a produção mais trash do gênero com seus filmes cheios de sangue e eviscerações. “O Mal que nos Habita” se mostra um herdeiro digno desse estilo até mesmo quando cai na armadilha clássica de explicar demais a própria mitologia, o que trava a narrativa lá pela metade.
Até lá, porém, o filme oferece uma sequência matadora de momentos brutais, que prendem pelo choque e fascinam pelo encadeamento rápido. Vale um spoiler, uma das cenas mais inacreditáveis acontece na casa da ex-esposa de um dos irmãos.
Enquanto o casal divorciado briga por quaisquer resquícios da separação turbulenta, o enorme cachorro da família de repente abocanha a filha pequena pela cabeça e a arrasta pela sala de jantar e para fora de casa. O ato maligno é tão rápido que dá até náusea, mal dando para a câmera seguir o animal e o irmão da vítima berrar por ajuda.
Nesse momento, pode-se imaginar o defensor da nobreza do cinema argentino vomitando no banheiro do cinema, o que pode ser a intenção do filme. Se isso acontecer nos próximos dias, palmas ao diretor.
[ad_2]
Fonte: Uol