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Claudia Raia desponta da escuridão com os cabelos puxados para trás e os longos brincos pendentes que se tornaram a imagem-síntese de Tarsila do Amaral desde que a pintora assim se retratou, em 1924.
A atriz faz sua primeira aparição no musical “Tarsila, a Brasileira” envolta em um mantô geométrico e nos acordes da abertura de “O Guarani”, de Carlos Gomes.
Se o traje poderia ter saído do guarda-roupa modernista, a escolha da ópera parece contraintuitiva. Afinal, o movimento dos paulistas —já não tão “jovens” como pretende a fala inicial de Raia— nasceu para enterrar o ideário do século 19, como o romantismo de José de Alencar relido por Gomes.
A primeira palavra cantada pelo vozeirão da atriz é “Brasil”. “Meu Brasil brasileiro…”, entoam os lábios vermelhos.
A canção de Ary Barroso dá à escolha de “O Guarani” outro sentido. Por contiguidade, Tarsila entra no rol dos símbolos nacionais atemporais, como “Aquarela do Brasil” e “O Guarani”. Era, afinal, isso o que ela declaradamente desejava ser, a pintora da sua terra.
Depois do número em que, cercada de bailarinos, Raia encena gestos de pintura, a narrativa se desloca para o ateliê da artista na rua Vitória, região central da capital paulista.
Na sala de Tarsila estão a pintora Anita Malfatti e os escritores Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti del Picchia —respectivamente Keila Bueno, Jarbas Homem de Mello, Dennis Pinheiro e Ivan Parente. Ao lado de Raia, eles serão os condutores da narrativa.
Tarsila desce uma escadaria usando um vestido transparente e rendado de tom laranja. O “chic” do ateliê e de sua dona são atribuídos a sua estada em Paris, onde a pintora fazia estudos enquanto, em São Paulo, se desenrolava a Semana de Arte Moderna. É para ter notícias do evento, do qual não participou, que a recém-chegada convoca os visitantes.
A recriação do que teria sido o primeiro encontro do Grupo dos Cinco põe a trama de cara no terreno da ficção. Em 1922 Tarsila ainda guardava a aparência sóbria de mulher da aristocracia cafeeira. A figura exuberante que hoje conhecemos nasceria apenas em nova temporada parisiense, já ao lado de Oswald de Andrade.
Naturalmente, a sintese é um esteio incontornável em obras baseadas na realidade, como “Tarsila, a Brasileira”, que condensa 50 anos em 2h30.
Em um dos primeiros textos do programa do musical, seu diretor cênico e de arte, José Possi Neto, afirma, em uma espécie de salvo-conduto, que a peça, escrita por ele e Anna Toledo, não pretende ser biografia ou documentário.
É uma advertência necessária, pois, em nome da requerida síntese, a fidelidade aos fatos passa bastante longe. Para alguém que se debruça sobre os acontecimentos da vida de Tarsila, é incômodo ver a cronologia embaralhada. Sob esse prisma, o musical tem momentos de franco “samba do modernista doido”.
A liberalidade com que a história é tratada permite momentos totalmente inventados como o duelo, misto de boxe e flamenco, em que um enciumado Oswald se bate com Pablo Picasso no ateliê parisiense de Tarsila, arrancando risos da plateia. O humor se faz notar em várias passagens, das quais essa é a mais simpática.
Nesse mesmo ateliê de Montmartre, faz uma entrada triunfal o príncipe Tuvalu, do Daomé. O personagem, que de fato frequentava o circuito artístico de Paris, é descrito pela pintora em uma crônica como “um jovem civilizado […] elegantemente trajado à europeia”.
Na peça, ele aparece de torso nu e, bailando, reverencia o gênio de Tarsila no quadro “A Negra”. Estaria essa figura ali para representar a influência da arte africana no cubismo que a pintora então descobria?
Passado algum tempo, contudo, até o espectador que porventura tenha esse grau de informação abandona as comparações para dar atenção à realização estética contida nos ricos figurinos de Fábio Namatame e os cenários de grande engenho de Renato Theobaldo.
A coreografia de Alonso Barros permite a Raia números intensos, sem exigir dela estripulias, e tem seu ponto alto no emocionante quadro da prisão da artista no presídio feminino do Paraíso.
A música de Tony Lucchesi e Guilherme Terra colabora decisivamente para entregar o que a produção prometeu em entrevistas —uma obra nacional que não quer ser Broadway.
Ritmos brasileiros se alternam nas composições. Até um leve toque “sertanejado”, honrando as origens interioranas da artista, comparece, tanto em “Um Mundo sem Moldura”, belo tema de Tarsila, quanto na tocante “Aí Vai meu Coração”, que introduz seu último e mais duradouro romance, com o jovem crítico carioca Luís Martins, duas décadas mais jovem que ela.
Na peça, a imagem de musa apaixonante prevalece sobre a da artista. A qualidade criativa é exaltada, mas não recebe muita explicação na trama. Diga-se que nem sua figura sedutora, nem seu sucesso artístico brotaram do nada.
Talvez a estrutura narrativa em quadros justapostos, nas quais falas breves resumem os fatos-chave, não favoreça totalmente o entendimento da trama para quem não conhece bem a retratada. Em alguma medida, o esquema faz lembrar alegorias de escola de samba, enfileiradas a serviço do enredo.
De fato, tudo acaba em Carnaval, com direito a estandartes, em uma grande homenagem aos artistas nacionais, até os contemporâneos. A palavra final, como a inicial, é Brasil.
Após a sessão para convidados, os discursos de Raia e Possi Neto frisaram o tom de manifesto do “finale”. Enquanto a atriz e produtora ressaltou a importância da Lei Rouanet, o diretor asseverou que o musical era cultura, não só entretenimento.
O debate sobre essa distinção não cabe neste texto. Rigor histórico bem à parte, “Tarsila, a Brasileira”, oferece ao público de musicais um verdadeiro espetáculo.
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Fonte: Uol