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O cenário é uma mesa de bar localizada na Galícia, comunidade autônoma no noroeste da Espanha. Nesse ambiente escuro, notavelmente abafado e claustrofóbico, galegos de meia idade conversam enquanto jogam dominó. A câmera passeia pelos seus rostos, pelo jogo à mesa, pelos copos vazios, e pelo grande homem que, bebendo sentado à bancada, parece estar alheio ao assunto.
“Quando acha que foi o último francês mandado à guilhotina?”, Xan, personagem de Luis Zahera, pergunta. Em 1977, ele mesmo responde, acrescentando: “maldito país de selvagens.”
Essa cena, que poderia ser apenas frívola em um cotidiano rural, ganha contornos de suspense em “As Bestas” e antecipa uma das principais marcas do longa dirigido por Rodrigo Sorogoyen: o mergulho na violenta complexidade das relações humanas, ressaltado por subjetividades capazes de, em um espaço de opressão generalizada, suspender qualquer tentativa moral de categorização.
Isso porque é diante do preconceito e do ressentimento que Xan interpela o grande homem da bancada —o protagonista Antoine, interpretado por Denis Menochet— quando este se dirige à saída.
São esses sentimentos, misturados ao desejo de ascensão social e ao medo do abandono, que fazem escalar a xenofobia implícita num dos primeiros diálogos do filme, descrito acima, a uma tortura psicológica e concreta frente àquilo que é estrangeiro.
Antoine é francês, casado com Olga, papel de Marina Foïs, uma mulher também francesa. Juntos, eles se mudaram para a Galícia, onde restauram casas abandonadas, muitas delas em ruínas, para devolvê-las, sem fins lucrativos, à população. É um modo de retornar à comunidade, como ele mesmo explica, tudo aquilo que recebeu.
Mas ele é também visto como um empecilho pelos homens dessa mesma comunidade por votar contra a instalação de um parque eólico na região, empreendimento que, como acreditam parte desses homens, pode alterar a condição de miséria em que vivem.
Frente a esse embate, de acordo com suas crenças e tradições, é necessário domá-lo, tal como são domesticados os cavalos selvagens que habitam os arredores.
A construção da violência no longa de Sorogoyen ocorre em crescente quando são estabelecidos os signos da diferença entre aquele que chega e aquele que está. O que se inicia como um aparente descontentamento se revela mais profundo, e o conflito, que até então estava contido às brincadeiras de mau gosto e às ameaças veladas, se torna tangível.
Concomitante à presença do perigo, ainda resta espaço para discutir a ineficiência e o desinteresse das autoridades, que insistem em manter no âmbito privado uma discussão que é pública; as construções das masculinidades e das feminilidades, que dão contexto e subtrama à representação daquilo que se mostra agressivo; e as diferenças culturais de povos seculares, que se manifestam nas formas mais simples de apreender o mundo.
Um exemplo que impressiona é a confiança que Antoine deposita numa filmadora, usada simultaneamente como instrumento de defesa e ataque diante das ações, materiais, do inimigo autodeclarado.
Ao passo em que o equipamento indica, com certa precisão, o hábito atual de registrar para constranger, ele acaba se mostrando ineficiente ao longo da narrativa. Não só porque a câmera é incapaz de, por si própria, salvar seu portador, mas porque a lógica por trás do ato de intimidação faz pouco sentido num espaço que funciona segundo outras regras e costumes.
Toda essa ambientação faz com que “As Bestas” se torne um filme inquieto, tenso, prestes a explodir. E a Galícia, cuja bucolidade é registrada em esplendor, com planos abertos capazes de singularizar a beleza na imensidão, é transformada num microcosmo do que pode ser a sociedade europeia contemporânea: simultaneamente aterrorizada e perversa.
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Fonte: Uol