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O Brasil vivia sob a ditadura militar quando a novela “Espelho Mágico” estreou, em 1977. A trama da TV Globo trazia no elenco a atriz Claudia Celeste, mas a participação dela foi breve. A empresa descobriu por meio de jornais que a artista era travesti, ficou com medo de sofrer censura e decidiu cortar seu papel do folhetim.
Quase 50 anos se passaram e o cenário mudou. A mesma emissora escalou no remake de “Renascer” a atriz Gabriela Medeiros, que é transgênero, para dar vida a Buba, personagem que também é uma mulher trans.
A mudança de postura da emissora ilustra um movimento sociocultural, em que, embora ainda encontrem barreiras no mercado das artes, pessoas trans dizem vislumbrar avanços importantes. Antes excluídos da teledramaturgia, alguns desses artistas hoje se veem representados no horário nobre.
Na televisão, por exemplo, além de “Renascer”, a Globo tem outra personagem trans no ar, a Renée do folhetim “Elas por Elas”. A Record, por sua vez, anunciou com alarde há pouco tempo que contratou a primeira atriz trans para sua dramaturgia.
Com Buba e Renée, a Globo parece querer mudar a forma como trata a pauta trans. O canal foi criticado por ativistas ao escalar uma atriz cisgênero —pessoas que se identificam com o gênero designado a elas quando nasceram— para viver um homem trans em “A Força do Querer”, de 2017. Depois disso, a emissora até criou personagens trans, mas quase sempre relegando esses papéis a participações pequenas.
Questionada, a empresa diz ter estruturado em 2020 um setor para supervisionar assuntos relacionados à diversidade e inclusão de minorias.
Com isso, a nova “Renascer” deve encontrar uma Buba bem resolvida com sua própria identidade de gênero. É uma mudança importante em relação à trama original, de 1993, na qual ela é intersexo —antes chamado de hermafrodita—, e cede a um pedido violento do amado, fazendo uma cirurgia para modificar sua genitália para agradar a ele.
À época, Buba irritou espectadores mais conservadores e gerou controvérsia na imprensa. “A Aberração que Seduz o Público das 20h” e “Sexo Ambíguo Vira Cult” diziam títulos de reportagens desta Ilustrada. Uma reportagem do jornal O Globo, por sua vez, dizia que Buba era metade homem e metade mulher.
O romance entre Buba e Zé Venâncio, agora vivido pelo galã Rodrigo Simas, deve pôr à prova a aceitação de um público acostumado a fazer troça de pessoas cisgênero que se relacionam com pessoas trans. A avaliação é de Jaqueline Gomes de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura, a Abeth.
“Homens riem de homens que ficam com mulheres trans ou travestis. Há um certo imaginário de que elas são uma farsa, um golpe, uma armadilha, o que reforça esse aspecto cômico”, afirma.
Apesar de Buba, o cenário está longe do ideal, dizem atores trans, que querem ser vistos para além da sua identidade de gênero. “Esperam que a gente só faça pessoas trans, prostitutas ou cabeleireiras. Mas existe um leque absurdo de papéis”, afirma Verónica Valenttino, atriz vencedora do Shell, um dos prêmios mais importantes do teatro brasileiro.
“Nossas conquistas ainda são vistas como espantosas. Eu celebro ser a primeira travesti a ganhar o Shell, mas também denuncio. Foram 35 anos [sem reconhecimento] dos nossos corpos, que sempre fizeram arte, seja na boate, seja no teatro.”
O teatro demorou para entender como encenar a pauta trans. Foi só nos anos 2000 que houve avanço notável nas artes cênicas, muito alavancado pela cubana Phedra De Córdoba da companhia de teatro Os Satyros, que estrelou espetáculos como “Transex”. Hoje o grupo tem em seu elenco Márcia Dailyn, a primeira bailarina trans do Theatro Municipal de São Paulo.
É essa naturalização que busca a atriz Maria Clara Spinelli, intérprete da primeira protagonista trans de uma novela brasileira em “Elas por Elas”. Ela, que é trans, diz querer ser conhecida pelo seu ofício, não por sua identidade de gênero. “Fazem isso para enaltecer e trazer para a questão política. Mas também está estigmatizando”, disse a artista, quando a novela estreou.
Nesse sentido, o cinema nacional ainda engatinha. É difícil pensar em filmes com temática trans que chegaram ao circuito comercial, restando à produção independente tratar do assunto, caso de “Valentina” e “Paloma”.
Nas telas do exterior, a discussão também avança a passos lentos, embora esteja mais madura. Se há nove anos Eddie Redmayne, um homem cisgênero, foi indicado ao Oscar por interpretar uma das primeiras pessoas a passar por uma cirurgia de redesignação sexual, em “A Garota Dinamarquesa”, nos últimos meses uma quantidade significativa de atores e atrizes trans foi escalada para papéis em que identidade de gênero pouco importa.
Não sem atrair críticas, no entanto. No caso mais notável, Hari Nef se viu atacada por transfóbicos nas redes sociais por interpretar uma das bonecas de “Barbie”. Mas isso não impediu que o longa se tornasse a maior bilheteria do ano passado.
Outro caso de sucesso comercial em que uma atriz trans encarnou um papel-chave na trama foi o de “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, que tem no elenco Hunter Schafer, conhecida por debater transgeneridade em “Euphoria”.
Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Segundo relatório anual da Glaad, associação que busca expandir a representatividade LGBTQIA+, personagens trans continuam muito escassos em comparação com os representados pelas outras letras que formam essa comunidade.
Pessoas transgênero também têm publicado cada vez mais livros, segmento historicamente dominado por homens cis brancos. A análise é da escritora e professora de literatura Amara Moira, que lembra “Cisforia”, de Lino Arruda e Lui Castanho, e “Ex/Orbitâncias”, de Abigail Campos Leal, como obras que tratam da realidade vivida pela comunidade trans.
“Se construímos uma literatura das elites, a gente só vai ver o que eles conseguem enxergar. Por mais esforçada que a elite seja, ela nunca perceberá as atrocidades cometidas contra outros grupos”, diz a pesquisadora.
O problema, afirma Moira, é que o mercado espera que a produção de pessoas trans sempre tenha um caráter autobiográfico. “Estamos rompendo com essa expectativa, ainda contando nossa história, mas trazendo outras narrativas e apresentando nossa capacidade de ficcionalização”, diz. É o que faz a argentina Camila Sosa Villada, autora de obras que misturam autobiografia com ficção.
Outro gargalo, diz Moira, é que as obras costumam ser publicadas por editoras de pequeno porte ou pelo próprio escritor, o que limita sua circulação.
A indústria fonográfica vive uma situação semelhante, com artistas trans enfrentando dificuldade para encontrar financiamento. O cantor Gali Galó conhece de perto essa realidade.
O artista tem chamado atenção, ainda que num nicho, por usar a estética sertaneja para falar sobre sua vivência enquanto pessoa não binária trans masculina —alguém que não se identifica nem como homem nem como mulher, mas que se inclina à expressão de gênero masculina.
Galó cresceu ao som da viola, mas acabou se afastando desses acordes. “A gente até queria estar nos bares ouvindo música sertaneja, mas para quê? Para ser motivo de chacota? Fomos expulsos do sertanejo e hoje tentamos voltar.”
Ao lado de artistas como Zerzil, Alice Marcone e Sabrina Angel, ele engrossa o queernejo, derivado da música sertaneja feita por pessoas LGBTQIA+. É um movimento nascido há cinco anos após o cantor Gabeu, filho do músico Solimões, fazer sucesso com uma música sobre um relacionamento gay vivido na roça.
Galó diz que o principal obstáculo à popularização do estilo é a falta de patrocínio. “Ser trans no Brasil não é barato. Eu penso em adoção, em fazer harmonização e mastectomia, procedimentos que demandam dinheiro. Não sei se sustento minha arte ou minha existência.”
Os dilemas se estendem ainda às artes visuais. Se por um lado artistas como Uýra Sodoma, Castiel Brasileiro Vitorino e Élle De Bernardini têm tido mais visibilidade nos últimos anos, por outro ainda falta equilíbrio entre o número de artistas trans e cisgênero em instituições artísticas.
“Ter somente três artistas trans negras representadas em uma galeria demonstra que esse é um mercado que não se abriu totalmente ao que a gente produz”, diz Tadáskía, que participou da última Bienal de São Paulo. “É difícil encontrar interlocução”, acrescenta. “Parece que estamos sozinhas em um mercado selvagem. Quando há o encontro com outra pessoa, é quase como se fosse um milagre e uma dádiva.”
Colaborou Leonardo Sanchez
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Fonte: Uol