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Humberto Carrão tenta voltar à vida que tinha antes de seu caminho cruzar com o de José Inocêncio. Os fios negros e abundantes que preenchem sua barba indicam que ainda há nele muito do que é o seu personagem em “Renascer”, novela das nove que chegou à grade da TV Globo nesta semana e é protagonizada pelo ator em sua primeira fase.
Ao longo dos quatros meses em que se preparou e em que efetivamente viveu o papel, Carrão impôs a si mesmo um repertório de filmes, livros, músicas e imagens que o ajudassem a mergulhar no universo do fazendeiro da zona cacaueira de Ilhéus, na Bahia.
Desde que as gravações da primeira etapa da trama foram encerradas, no início de janeiro, todo esse repositório passou a dar lugar às suas preferências. Já a barba farta, explica, segue em seu rosto não por apego ou por vaidade. “Não me deixaram tirar ainda com medo de que eu tenha que gravar alguma coisa”, diz. “É um adeus em que você meio que fica no modo avião.”
O ator de 32 anos conta que, quando surgiram as conversas sobre o papel, imediatamente buscou pelos capítulos da primeira versão do folhetim, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, exibida em 1993. “Fiquei maluco. Tive certeza de que queria fazer”, afirma à coluna.
“Esse personagem é um dos mais bonitos, disparados, que eu já vi na minha frente. José Inocêncio é protegido por Deus, pelo diabo, por Ogum e por Nossa Senhora. Ele faz um pacto e é protegido por uma árvore. A novela está o tempo inteiro esbarrando na ideia de mito, de folclore, no realismo fantástico”, diz Carrão. “Acho que todo mundo sente um pouco ‘Renascer’ como um acontecimento bonito nas suas carreiras.”
Para além do encantamento com a obra de Bruno Luperi, o ator diz estar experimentando algo completamente novo com a repercussão do remake, iniciada muito antes de sua estreia. Em Ilhéus, onde o elenco viveu por algumas semanas, frequentando não só as ruas da cidade baiana como também seus sambas e forrós, o anseio do público era nítido.
“As pessoas vinham falar da alegria delas de que a gente estivesse ali, de que o ‘Renascer’ fosse acontecer de novo”, afirma ele, que não tinha nem dois anos de idade à época da primeira exibição. “É uma novela que está no coração e na memória de muita gente, as pessoas sabem de cor as falas.”
Nos últimos anos, Humberto Carrão tem emendado uma sequência de trabalhos reconhecidos e de ampla repercussão, como o longa “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, as séries “Betinho” e “Rota 66”, do Globoplay, e as novelas “Amor de Mãe” e “Todas as Flores”. Em comum, todos guardam o fato de terem sido escolhidos a dedo pelo ator.
“Tomo muito cuidado com as coisas que eu faço. Acho que dizer ‘não’ é muito importante para a construção de uma carreira”, diz. “O erro [em uma eventual escolha de trabalho] não tem a ver com fazer sucesso ou não. Já fiz coisas que fizeram sucesso e não me deram tanto prazer, e outras que ninguém viu, mas fui muito feliz fazendo. Parte da graça está aí.”
Entre amigos, Humberto Carrão é conhecido por sua entrega rigorosa a todos os projetos em que se envolve, por vezes alterando até mesmo o modo como encara a sua rotina. “É que tem muito prazer envolvido”, explica, ao falar sobre como cumpre com as exigências intelectuais, mas também físicas, dos papéis que assume.
Em “Marighella”, por exemplo, topou acrescer 12 quilos ao seu peso sem impor resistência. “Quando o Wagner [Moura] veio com esse papo de que ele queria que eu engordasse, perguntei como ele tinha feito em ‘Narcos’ [série da Netflix]. Achei que ele me indicaria um plano alimentar específico, com nutricionista, mas ele falou: ‘Cerveja e hambúrguer’. Eu, que já gosto de uma roda de samba…”, conta, aos risos.
Difícil de acreditar que há sempre um prazer envolvido para quem viu a cena de “Renascer” em que ele aparece de ponta-cabeça, com os pés amarrados nos galhos de uma árvore, enquanto tem partes de seu corpo despeladas por jagunços. Mas Carrão diz que sim, foi feliz ali também.
A passagem, presente no início do primeiro episódio da novela e compartilhada à exaustão nas redes sociais, foi exibida por poucos minutos aos telespectadores, mas levou um dia inteiro para ser filmada. “No momento em que a gente começou a gravar, o chefe da equipe de efeitos e dublês me falou assim: ‘A cada vez que a gente te pendurar, vai ser pior’. Primeiro, doeu o pé. Depois, o abdômen. Aí, a cabeça pesa. A gente acha que está enganando o corpo, mas ele se manifesta.”
“Você tem o sofrimento físico ali, mas é bonito quando você está para fazer uma cena difícil e empresta o nervosismo para o personagem. E, nesse caso, empresta a dor também”, diz. “O corpo sofre, mas… Porra, era tanto prazer fazendo essa cena tão foda e esse personagem, que vira uma graça”, completa, rindo de si mesmo.
Quem faz uma busca rápida pelo nome do ator nas redes logo se depara com promessas de amor e relatos de mulheres e homens que dizem perder o fôlego com a simples aparição de imagens de Carrão nas telas de seus smartphones. Uma enxurrada de comentários com o mesmo teor se repete nas fotos publicadas pelo ator no Instagram.
“Você estreia quando na minha vida?”, “o carrão que eu queria ter”, “um dia serás meu marido” e “se eu fosse jovem, lutaria pelo amor desse homem” são algumas das declarações feitas a ele diariamente. No Rio de Janeiro, como mostrou a revista Piauí, o alvoroço em torno de seu nome rendeu um grupo de WhatsApp em que as integrantes avisam umas às outras quando encontram Carrão em uma roda de samba.
Ele, contudo, não se rende aos apelos e faz as vezes de galã contrariado. “Tenho um pouco de dúvida sobre o quanto isso é real e o quanto é uma piração virtual de alguns que fazem barulho, mas não são tantos. Não é, de verdade, uma coisa que me alimente ou que eu tenha interesse em manter.”
“Quando falo que esse assunto me interessa menos, a impressão que dá é a de que eu nego o fato de ele existir, de existir assédio ou de existir algum interesse em mim. Não é que eu negue, é só que eu tenho menos interesse em falar sobre isso. Mas como tenho menos interesse, acho que caí numa armadilha. As pessoas adoram a ideia do incômodo e, por isso, de falar desse assunto.”
“Muito, muito cedo eu percebi que tudo isso vai embora. Rápido, rápido”, diz, estalando os dedos. “Então, eu não me iludo nem com o sucesso nem com o fracasso. Busco o prazer no ofício e em outras coisas.”
Filho de dois servidores do Banco do Brasil, o ator começou a experimentar as artes cênicas por volta dos nove anos de idade, quando foi selecionado ao acaso, em uma aula de teatro, para um projeto no Canal Futura. Ao olhar para sua infância, diz ter sido muito feliz, embora não guarde um saudosismo do período.
“Acho que sou meio velhinho desde criança”, brinca. “Tem, claro, uma constituição de quem eu sou, do meu temperamento, dos meus orixás, das constelações, do que me constrói. Mas tem também uma coisa de ter começado a trabalhar desde muito jovem. Sou um filho de pais mais velhos, cheio de irmãos mais velhos.”
“Meu pai vai fazer 80 anos agora. O que é lindo de se dizer, porque ele enfrentou um câncer nos últimos dois anos. E ele está bem, está com saúde, está forte. O máximo, né? Continua o tratamento, mas é muito bonito. Isso mexe muito com a nossa vida, a possibilidade de perder quem ama.”
Neste ano, assim como nos últimos três que se passaram, o artista segue cultivando com afinco seu projeto de filme inspirado na vida de Aracy de Almeida, o primeiro que irá dirigir. A obra ficcional, antecipa ele à coluna, será focada nos últimos anos de vida da cantora.
“Sou louco por ela e louco por samba”, diz, sem esconder seu entusiasmo com o trabalho. “O argumento está pronto, estou trabalhando no roteiro e atrás de gente para me ajudar a fazer esse filme. Estou muito contente com a leitura de muitos amigos e de pessoas que são muito importantes para mim, que estão gostando.”
“Aracy viveu uma encruzilhada muito estranha, específica e especial. Ela era uma senhora muito famosa nos anos 1980, encravada no que existia de mais popular da época, que eram os programas de auditório, sendo a jurada que todas as emissoras queriam roubar. Ao mesmo tempo, experimentava em vida um tipo de esquecimento brutal, um lado que era lembrado por poucos, porque ela era —e é— uma das maiores cantoras da história desse país.”
Conhecido por suas posições à esquerda do espectro político, Carrão diz ver com satisfação o trabalho que vem sendo desempenhado pelo Ministério da Cultura e pelo governo Lula.
“A gente voltou a respirar e também a ter um pouquinho —um pouquinho só— da possibilidade de não ter que viver política todos os dias, algo que a gente não podia durante o governo Bolsonaro. Era um estado de vigilância permanente, e acho que só agora a gente percebe o quanto a respiração estava apertada. O governo Lula, de cara, já devolveu o ar.”
O ator defende que a discussão em torno da regulamentação da atuação das plataformas de streaming no país seja feita “urgentemente” e “colocada em lei”.
“Toda essa gente que vem aqui nos encher de material estrangeiro precisa produzir no país. A gente não pode virar um país que consome tudo o que é feito fora e não ter uma relação com a nossa cultura, com os nossos lugares, o interesse de contar as nossas histórias”, diz. “Não vejo espaço para que essa discussão não exista. Se não for acontecer agora, durante esse governo, vai acontecer em qual?”
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Fonte: Uol