[ad_1]
Nas noites de concerto, o portão de ferro da Sala São Paulo separa duas realidades distintas. Do lado de fora, o cenário de emergência humanitária é composto por amontoados de lixo e grupos fumando crack. Dentro da sala, impera a sobriedade, típica do mundo da música de concerto. Entre uma taça de espumante e outra, o público flana pelo hall até que trombetas soam, anunciando o início do programa.
Em 2024, a sala faz 25 anos e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo completa sete décadas de existência. O conjunto abre a próxima edição do Festival de Berlim, mas as comemorações são abafadas por dois desafios. Funcionários da Osesp relatam o medo que sentem ao caminhar pelos arredores da sala, cercada pela cracolândia, e temem a piora na qualidade das apresentações, com a falta de músicos em posições de liderança e o excesso de artistas temporários.
Todos os naipes da Osesp —nome dado à seção de uma mesma família de instrumentos— são chefiados por um músico, quando, em geral, uma orquestra deve ter dois chefes, que se alternam ao longo do ano. A depender do repertório, os artistas se apresentam juntos. Faltam agora outro “spalla”, violinista que é o braço direito do maestro, e outras primeiras flauta, viola, trompa, trompete e violoncelo, informa a listagem da Associação dos Músicos.
De acordo com Jefferson Collacico, presidente da Aposesp, os atuais líderes dos naipes ficam sobrecarregados, tendo de trabalhar por sucessivas semanas sem descanso e sem a preparação ideal para as apresentações.
Para preencher as vagas, a Osesp recorre a músicos de fora, o que representa um entrave para o desenvolvimento artístico da orquestra, que se alicerça numa unidade sonora. Collacico afirma que algumas vagas estão em aberto há muito tempo. Há dez anos, ele diz, não há outro “spalla”, além do italiano Emmanuele Baldini.
“É como time de futebol. Você não vê os times jogando com convidados”, diz Collacico, contrabaixista. Ele acrescenta que a direção faz economia ao recorrer a temporários, algo que outros funcionários da orquestra ouvidos pela reportagem também afirmam.
O diretor-executivo da Osesp, Marcelo Lopes, e seu maestro e diretor musical, Thierry Fischer, afirmam que os músicos têm razão em apresentar a queixa.
Lopes diz que é comum os conjuntos contratarem artistas temporários, mas não em funções de liderança. Afinal, os chefes de naipe ditam como a partitura deve ser interpretada e executam os solos atribuídos ao seu instrumento. Ele ainda afirma que a Osesp está empenhada em recrutar os artistas, o que deve ocorrer a longo prazo e com cuidado artístico, já que a formação de uma orquestra é um projeto geracional.
“A Osesp não vai se acomodar”, diz Lopes. O diretor não nega, porém, o peso orçamentário que as contratações podem representar. “Estamos falando de um custo fixo na folha de pagamento nos próximos 40 anos. É uma questão de responsabilidade fiscal.”
Neste ano, o investimento na Osesp, entre patrocinadores, verba pública e doações, aumentou em R$ 10 milhões. Agora, será um montante de aproximadamente R$ 140 milhões, sendo R$ 65,5 milhões, ou 47%, vindos do governo do estado de São Paulo. Sob Tarcísio de Freitas, do Republicanos, o repasse aumentou em R$ 2 milhões.
Músicos e diretoria têm consciência, no entanto, de que o desafio é ainda maior —e isso tem a ver com o globalizado e bilionário mercado da música de concerto. Não se encontra um músico sinfônico como se contratam profissionais de outras áreas, com currículos e entrevistas.
As grandes orquestras disputam hoje uma corrida para captar os artistas mais talentosos do mercado. Se a Osesp entra em conflito com as principais instituições do mundo, ela também sai em desvantagem, dado o contexto socioeconômico do Brasil e a queda do valor da nossa moeda, que dificulta a contratação de estrangeiros.
Em maio, Fischer fez uma audição para um “spalla”, mas o candidato não foi aprovado nem por ele nem pelo naipe.
O cerco da cracolândia
Em paralelo, os funcionários e o público da Osesp enfrentam um problema urgente —a convivência com a cracolândia. Atualmente, mil usuários de drogas moram na rua dos Protestantes, a poucos metros da praça Júlio Prestes, onde fica a Sala São Paulo, uma Viena no meio do abandono.
“Estamos numa área conflagrada, mas somos um ato de resistência”, afirma Marcelo Lopes, o diretor-executivo da Osesp. Dois integrantes da orquestra relatam em anonimato um mesmo incidente no fim da temporada passada. Um músico lanchava, na frente da sala, quando um homem roubou seu telefone. Ao reagir, o artista se machucou e desfalcou o conjunto.
O caso exemplifica uma luta que se arrasta há décadas. Há 20 anos, os sucessivos governadores e prefeitos tentam resolver a questão.
Agora aliada a Guilherme Boulos, do PSOL, Marta Suplicy, que foi prefeita de 2001 a 2004, optou por uma estratégia de acolher os moradores em situação de rua. Seu sucessor, José Serra, do PSDB, demoliu os imóveis ocupados por dependentes químicos. Entre a acolhida e a truculência, o problema persistiu.
Em 2009, então governador, Serra investiu R$ 100 milhões para criar um complexo cultural na região, que compreende a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa. Seria o Complexo Cultural da Luz, uma imitação do Lincoln Center, de Nova York. A iniciativa nunca integrou os aparelhos culturais da região, dada a insegurança das ruas do local.
Em paralelo, o então prefeito Gilberto Kassab, do PSD, realizou a chamada Operação Sufoco, apelidada por detratores de “operação dor e sofrimento”, que tentava reprimir os usuários. Em 2017, uma iniciativa do prefeito João Doria, do PSDB, espalhou a cracolândia pelo centro, o que só se agravou com a desocupação das ruas durante a pandemia. Nas duas primeiras semanas deste ano, três pessoas foram mortas e outras duas foram baleadas nos arredores da Sala São Paulo.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública do Estado afirmou, em nota, que aumentou a segurança na região, incorporando 120 policiais ao efetivo.
Grife internacional
Apesar dos desafios, a Osesp vive um momento de prestígio internacional, sendo considerada pela crítica especializada a melhor orquestra da América Latina. São 104 músicos, sendo 34 brasileiros e 70 estrangeiros, de países como Moldávia e Romênia, mas faltam mais chefes de naipe. Para termos de comparação, a Filarmônica de Nova York tem menos contratados, 89, mas seu quadro está completo.
Tampouco o público desistiu da região central. Em 2022 e 2023, o público cresceu 14%, atraindo mais de 246 mil pessoas no último ano. O conjunto tem boa relação com Thierry Fischer, maestro suíço nascido na Zâmbia e que está há quatro anos em São Paulo. Ele é descrito como um homem polido e democrático. Nos ensaios, gosta de dialogar com a orquestra e trabalhar as cores e os timbres.
Ele desenvolve agora um novo método de trabalho, buscando contribuir para a formação de uma identidade à orquestra. “Temos de ouvir a orquestra e reconhecer ‘essa é a Osesp’”, diz. “Não se toca Villa-Lobos e Guarnieri lá fora. O fato de ser uma orquestra brasileira só me deixou mais interessado no projeto.”
Fischer afirma que seu método de trabalho se alicerça no rigor, na escolha da programação e dos músicos solistas e no cuidado com o bem-estar da equipe. Sobre a recorrência dos funcionários temporários, o maestro apoia a demanda por mais contratações para as lideranças, o que daria mais conforto a todos. Ele reconhece o cansaço da orquestra e diminuiu a temporada em cinco semanas, para que todos pudessem se preparar melhor. “Os músicos têm razão. Eu os apoio e falo sempre com eles”, afirma.
Há dois anos, a Osesp, mudou, sem que ninguém esperasse, seu modelo de gestão. O cargo de diretor artístico, então ocupado pelo violonista Arthur Nestrovski, foi extinto. Fischer passou a acumular as funções de regente e diretor musical. Marcelo Lopes afirma que a iniciativa do Conselho da Fundação deu mais autonomia ao maestro na escolha da temporada.
Segundo os músicos ouvidos pela reportagem, a mudança de gestão foi positiva, porque diminuiu a distância entre a orquestra e a diretoria. Está previsto para o segundo semestre a inauguração de um espaço dedicado à música de câmara, com 600 lugares, um investimento no valor de R$ 26 milhões —metade de dinheiro público, metade de origem privada.
É a primeira temporada desenvolvida apenas pelo regente. Em agosto, a Osesp faz uma turnê pela Europa, passando por Espanha, Reino Unido, Holanda e Alemanha, onde faz um concerto histórico, na abertura do Festival de Berlim, na Philharmonie, o templo da música de concerto.
Na ocasião, a Osesp vai executar o poema sinfônico “Uirapuru”, de Heitor Villa-Lobos, e peças de Charles Ives, de Alberto Ginastera e de Edgar Varèse. Três meses depois, vai tocar em quatro cidades da China.
Um instante, maestro
O prestígio não surgiu do nada. Na história da Osesp, existem três reformas determinantes. Até 1973, ano da reestruturação empreendida pelo maestro Eleazar de Carvalho, a atuação da orquestra era irregular. Naquela década, Carvalho contratou mais músicos, incentivou a formação de talentos e criou o Festival de Campos do Jordão, no interior paulista. Na época, a Osesp ainda tocava em lugares improvisados, no Teatro Cultura Artística e no Memorial da América Latina.
Diretora executiva da instituição de 1998 a 2002, a gestora cultural Claudia Toni esteve ao lado do maestro John Neschling na segunda —e mais importante— reforma. Neschling fez uma peneira, elevando o nível dos músicos. Ele era apoiado pelo então governador Mario Covas, do PSDB, que investiu na construção da Sala São Paulo.
“Era uma cidade muito rica, mas o PSDB percebeu que havia necessidade de dar um lustro nessa riqueza”, diz ela, que de 2003 a 2005 foi assessora da Casa Civil do governo tucano. Em sua visão, a casa, projetada pelo arquiteto Nelson Dupré e comparada ao Musikverein, de Viena, foi determinante para o desenvolvimento da orquestra. Neschling foi demitido da Osesp, em 2009, por criticar a gestão do ex-governador Serra.
Nesse ínterim, foi criada a Fundação Osesp, instituição sem fins lucrativos que firmou contrato com o governo estadual. Agora composta por orquestra, coro, quinteto e quarteto, a fundação trouxe estabilidade para o projeto artístico, que passou incólume por qualquer crise política do estado, por combinar investimentos do governo e de incentivadores.
“Era um PSDB muito diferente do que existe hoje, mas, enquanto esteve no poder, o partido explorou a excelência da orquestra”, afirma Toni. Tanto que, até hoje, Fernando Henrique Cardoso é presidente de honra do conselho. Com o surgimento da fundação, o derretimento do PSDB não significou a descontinuidade do projeto artístico.
Em seguida, houve uma sucessão de maestros, substituídos naturalmente com o tempo. No lugar de Neschling, o francês Yan Pascal Tortelier assumiu o comando da orquestra, de 2009 a 2011. Foi uma passagem breve e tumultuada. Se tecnicamente ele é tido como uma sumidade, a relação com os músicos azedou rapidamente.
Nos ensaios, Tortelier tinha ataques de fúria, porque a orquestra não correspondia ao que ele esperava. Em 2011, ele concedeu uma entrevista à imprensa internacional e chamou os músicos da Osesp de imaturos. Também criticou o excesso de jogos políticos em torno da instituição. A reportagem não conseguiu localizar o regente para comentar o caso.
Em 2011, a americana Marin Alsop, uma das regentes em quem Cate Blanchett se inspirou para fazer seu papel no filme “Tár”, assumiu a batuta, intensificando a dobradinha com Nestrovski, que havia assumido a direção artística. “Demos um sentido de curadoria à programação, o que foi acompanhado por um crescimento do prestígio internacional”, afirma Nestrovski.
Dois anos depois, num momento em que não era comum ter mulheres à frente de orquestras, a Osesp tocou na Philharmonie de Paris e participou do BBC Proms, em Londres, um dos festivais de música mais importantes do mundo, em 2016. Quatro anos mais tarde, Alsop regeu a orquestra no Carnegie Hall, em Nova York. Nos bastidores, os músicos reconhecem a sua importância para o crescimento da Osesp.
Atualmente, ela é regente de honra e tem uma relação cortês com o grupo. Instrumentistas dizem, porém, que Alsop não desenvolveu tanto assim a orquestra, se envolvendo pouco com o conjunto no cotidiano. Ou, como dizem alguns deles, ela só se envolvia até o seu “that’s okay” —assim está bom.
Faltando pouco mais de um mês para o início da temporada, Fischer aposta no feijão com arroz do repertório sinfônico e dá atenção especial à primeira e segunda escola de Viena. Entre os destaques, estão o Ciclo Brahms —a interpretação integral das sinfonias do alemão Johannes Brahms— e o Festival Schubert, com as principais obras do compositor.
No aniversário da Sala São Paulo, em julho, a Osesp toca o mesmo programa que inaugurou a casa —a “Sinfonia nº2”, de Gustav Mahler, apelidada de “Ressurreição”.
Agora uma marca internacional, a instituição já está grandinha para enfrentar os dilemas das principais orquestras em atividade, como tocar um programa dedicado à música de animes em abril. Ao redor do mundo, a estratégia, usada para aumentar o público, virou uma polêmica entre os aficionados pelo repertório sinfônico.
Na Osesp, divide opiniões. Collacico, o presidente da Associação dos Músicos, não se entusiasma com a iniciativa. “A diferença entre a música de Pikachu e de Beethoven é um abismo.”
[ad_2]
Fonte: Uol