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A greve dos atores em Hollywood acabou no dia 8 de novembro, mas a discussão ética em torno do uso da inteligência artificial por estúdios para reutilizar a imagem e voz de artistas está longe do fim.
No mesmo mês em que a paralisação terminou nos Estados Unidos —após uma negociação entre o SAG-AFTRA e os maiores estúdios de cinema e streaming— a United Voices Artists (UVA), associação internacional criada para representar atores da voz no mundo todo, lançou a campanha “Real Voices”, que pede pela regulamentação da inteligência artificial para proteger a profissão dos dubladores no mercado.
São cláusulas específicas de contratos com as distribuidoras que estão assustando os dubladores, por motivos similares a aqueles que foram estopim para greve na Fábrica dos Sonhos, como o distrito cinematográfico de Los Angeles é conhecido. Assim como os atores se opuseram às brechas para que sua imagem e seus movimentos fossem utilizados em novas gravações, dubladores temem requisitos que possibilitariam a reutilização de suas vozes em criações futuras, sem seu consentimento ou pagamento extra.
Mas, no caso dos dubladores, há um elefante branco na sala: a possibilidade de sua profissão sumir, substituída completamente por ferramentas de IA que serão capazes, por exemplo, de gerar falas de atores americanos em português, como uma espécie de tradução simultânea.
Ainda que, no Brasil, os filmes dublados sejam preferidos pelo público. Exemplo é “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa”, um dos filmes de maior bilheteria nos últimos anos, que foi responsável por 82% das vendas dubladas nos primeiros meses de 2022. A lógica é similar nos streamings. Cerca de 85% dos assinantes da Netflix preferiu assistir a série “13 Reasons Why”, que fez grande sucesso quando lançada, dublada em português.
A United Voices Artists enviou um documento aos distribuidores que estabelece a regra de que vozes gravadas para um determinado filme ou série não poderão ser utilizadas para alimentar ferramentas de inteligência artificial sem a autorização dos dubladores, diz Sérgio Cantú, dublador, diretor e membro ativo da UVA.
Isso porque os contratos de dubladores brasileiros são definidos nas matrizes dos estúdios e distribuidores americanos, que padronizam as regras de trabalho para países estrangeiros —e, segundo ele, não mudaram após a greve nos EUA. “Esses contratos são bem problemáticos, porque ele é muito dúbio em vários aspectos e acaba, muitas vezes, ferindo a legislação desses países”, diz Cantú, que deu voz ao Sheldon Cooper, de “Big Bang Theory”, ou “Big Bang: A Teoria”.
O dublador, que dará voz a Zack Efron em “A Garra de Ferro”, com previsão de estreia no Brasil para 22 de fevereiro, diz que é comum encontrar cláusulas, nos contratos entre distribuidores e dubladores, que autorizam o uso da voz em tecnologias ainda não inventadas ou simulações. “Isso era para a época em que liberávamos o uso da voz no DVD, e ainda não tinham inventado o Blu-Ray. Mas em épocas de inteligência artificial, fica complicado”, diz.
Bruno Sartori, produtor de conteúdo através da deepfake, tecnologia que permite mixar rostos e vozes para vídeos hiper-realistas, acredita que a IA ainda não é desenvolvida o suficiente para substituir por completo o trabalho dos dubladores.
Existem duas formas para o uso da IA para a dublagem. A primeira, automática, apenas se apropriaria do timbre de voz de um ator americano —por exemplo, o Johnny Depp em “Piratas do Caribe”— para recriar as falas em português. O capitão Jack Sparrow, no filme dublado, teria a voz idêntica àquela de Johnny Depp, como se o ator soubesse falar em português.
“Nesse caso, a essência da arte seria perdida, porque é um computador tentando simular emoções. Não temos qualidade pra isso, e o emprego de muita gente seria tomado”, diz Sartori. Mas há outra maneira de utilizar a IA. Nela, um profissional da dublagem é necessário para reproduzir a fala, e então o timbre do ator da produção original, como a de Depp, seria acrescentado a sua voz.
Para Sartori, as duas opções estarão disponíveis em um futuro próximo. “Pelo caminho [de evolução] da ferramenta [de IA], é provável que os profissionais de dublagem sejam substituídos”. A única forma de evitar a perda de milhares de empregos seria, segundo ele, a regulamentação da inteligência artificial.
Para Flávia Fontanelle, diretora de dublagem de “Barbie”, de Greta Gerwig e atriz que deu voz a personagens como Roberta de RBD e Candace, da animação “Phineas e Ferb”, mesmo no caso em que o dublador seja contratado e o timbre substituído, a tecnologia representaria um retrocesso.
“O trabalho artístico é uma arte porque tem um lado humano que toca outro humano. A dublagem é viva, tem coisas que pensamos na hora do ensaio, acrescentamos detalhes às cenas”, diz.
“No estúdio colocamos bordão, meme que faz sentido para o público brasileiro. Como a inteligência artificial vai dar isso ao personagem?” questiona a dubladora Luisa Palomanes, que deu voz a Hermione, da saga de “Harry Potter”, e a Docinho, de “Meninas Superpoderosas”. “Queremos que a IA seja uma ferramenta, mas não que substitua os trabalhadores.”
Ela descarta a hipótese de que o uso do timbre do ator original poderia aproximar a dublagem da criação inicial do diretor, por exemplo, já que o cuidado para respeitar o trabalho artístico dos criadores de uma obra já é meticuloso. “Quando vamos dublar um filme ou animação, recebemos uma cartilha criativa, às vezes o diretor vem ao Brasil ou os dubladores vão ao estúdio americano para receber instruções.”
A diretora lembra do caso de “Scooby-Doo”, em que, após a morte dos dubladores, internautas afirmaram sentir falta das vozes de Salsicha e Scooby. “As pessoas se emocionam com a versão dublada, porque as vozes têm a cadência que elas estão acostumadas a ouvir”, diz Sérgio Cantú. “Nós não fazemos a simples tradução de um filme, mas adaptamos para a nossa linguagem, nossa forma de falar e interpretar.”
A United Voices Artists também levará a regulamentação da inteligência artificial na dublagem para o Parlamento Europeu, com o intuito de incentivar governos a legislar sobre o tema. Cantú também faz parte do movimento nacional Dublagem Viva, que levará a pauta à Margareth Menezes, ministra da Cultura.
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Fonte: Uol