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É atribuída ao pianista e regente Hans von Bülow (1830-1894) a escalação de Bach, Beethoven e Brahms —os três “bês”– como trindade de referência da música clássica. Outro nome, porém, também grafado com “bê”, deverá ocupar boa parte dos holofotes do mundo musical em 2024: Anton Bruckner (1824-1896), cujos 200 anos de nascimento já estão sendo festejados.
Bruckner não foi criança-prodígio. Nasceu no interior da Áustria, na região de Linz, que dista cerca de 180 km de Viena. Educado como organista de igreja e professor, passou a ensinar no mesmo monastério agostiniano no qual havia estudado. Somente a partir dos 44 anos, quando aceitou substituir seu ex-professor no Conservatório de Viena, é que sua carreira de compositor começou a decolar de forma gradual e crescente.
Suas nove sinfonias —sim, foram nove!— são o elo entre técnicas explicitamente inspiradas nos dramas musicais wagnerianos do alto romantismo e a tradição sinfônica clássica da chamada “Primeira Escola de Viena” (Haydn, Mozart, Beethoven). Suas obras são densas, longas, pesadas, e ajudaram a abrir caminho, já na virada do século 20, para o advento de nomes como Richard Strauss e Gustav Mahler.
Em seu país natal a interpretação dessa música tem ganhado novas cores, e reflexões sobre ela chegam a invadir as salas de concerto, tal como ocorreu em Viena no último sábado (13).
No Musikverein, a sede da Filarmônica de Viena, a Orquestra Bruckner de Linz (BOL, na sigla em alemão) apresentou a “Sinfonia nº4”, apelidada de “Romântica”, a mais conhecida do compositor.
Antes da performance, entretanto, durante quase uma hora, com a orquestra posicionada no palco, o regente titular Markus Poschner travou um diálogo com o jornalista e apresentador de TV Tarek Leitner, no qual exemplos musicais extraídos da sinfonia eram eventualmente tocados pelo grupo. Tudo em alemão e sem legendas, o que alienou parte da plateia internacional presente. Programada inicialmente para o espetáculo, a participação do marionetista Nikolaus Habjan foi cancelada.
A Grande Sala do Musikverein de Viena é considerada uma das acústicas mais privilegiadas do mundo clássico. No formato de “caixa” (como a nossa Sala São Paulo) ela tem capacidade de 1.700 lugares. É comum (como ocorreu no concerto de sábado) a plateia permanecer com luzes acesas durante o espetáculo.
Os “tremolos” das cordas no início da “Quarta Sinfonia” —base tênue sobre a qual surge o solo de trompa— foram tão “quase inaudíveis” quanto a partitura pede: toda a diferença está na mágica desse “quase”.
A sensação é de que o som da sala se precipita sobre a plateia, abolindo qualquer distância. Entre as inúmeras qualidades da acústica do Musikverein está uma reverberação ligeiramente maior do que a de salas similares, mas isso não afeta a clareza. Intimismo, vivacidade, brilho e calor mantêm-se juntos e equilibrados.
Bruckner escreve uma música “feita de pedra”, tal como as das catedrais que sustentam um edifício gigante e sagrado. Ela tem algo de estático, move-se com vagar.
Suas seções são separadas por pausas, pontpros que dividem claramente seus parágrafos. Os momentos não passam por transformações, como em Mahler ou Brahms, mas justapõem-se, como se um rigor barroco acolhesse harmonias estranhas.
Em sua interpretação, Poschner e a Orquestra de Linz buscam ressaltar a conexão de Bruckner com as sonoridades do interior da Áustria, especialmente as da música popular tradicional. Mas não só: estão nela paisagens sonoras, ecos dos toques militares, da música sacra, das caçadas no campo, e de uma natureza capaz de florescer após o gelo do inverno.
Às vezes, entretanto —como no segundo tema do primeiro movimento—, estão lá os sons da capital, a elegância vienense, irônica e sagaz, de seus antecessores Haydn e Mozart. Lembremos que, quando Bruckner nasceu, Beethoven ainda estava vivo.
Poschner regeu com domínio total da partitura, do grupo e da acústica da sala. Mas, apenas para não deixar passar: faltou um pouco de concentração na primeira parte do segundo movimento, prontamente corrigida; e, o quarto movimento, uma única retomada após longa pausa —entre as dezenas que a sinfonia pede—, não saiu perfeito.
Viena verá todas as sinfonias de Bruckner neste ano. No Brasil, onde as efemérides muitas vezes ditam as programações, faltou coragem para uma celebração mais consistente.
Ainda assim, a Sinfônica Municipal fará o “Te Deum”, em 25 de janeiro, e a “Sinfonia nº7”, em fevereiro, (mesma obra que será tocada pela Filarmônica de Minas Gerais em abril); e a Osesp apresentará a “Missa nº2” do austríaco, e a própria “Sinfonia Romântica”, em dezembro.
Não ocorreu aos contemporâneos desse compositor tardio, que revisava incessantemente sua produção e cuja religiosidade devota estava totalmente fora de moda, incluí-lo na lista dos grandes “bês”. Suas estranhas catedrais sonoras, no entanto, seguem plenas, a espera de quem possa decifrá-las.
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Fonte: Uol