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No novo Nanni Moretti há duas eras que se superpõem: o presente, quando o cineasta Giovanni realiza um novo filme, e 1956, momento em que a URSS invade a Hungria rebelde. É precisamente a repercussão desse acontecimento na Itália que o filme analisa.
A distância entre os dois tempos já indica os abismos em que o filme se moverá. Numa das primeiras sequências, uma das pessoas da equipe se espanta ao ser informado de que na Itália já houve comunistas e que eles eram muitos.
É a primeira cena do típico bom-mau-humor de Moretti. Ele vai vigorar ao longo do filme como talvez nunca antes.
Existem as simples implicâncias: com o salto alto da atriz, por exemplo. Mas também as divergências: por que atores resolvem se beijar numa cena que nada tem a ver com isso? Ou ainda: quem disse que o retrato de Stalin deve entrar no filme? Mas era assim nas secções do Partido Comunista Italiano —argumenta o contrarregra. “Essa é uma secção do PCI no meu filme”— conclui Giovanni. Não é só: há que administrar o circo húngaro que está em excursão na Itália a convite do PCI.
Por essas e por outras, a mulher de Giovanni, também sua parceira indispensável nos filmes que faz, está disposta a deixá-lo. Por ora, faz sessões de análise secretamente (sem contar ao marido). Por isso também, a filha pós-adolescente prefere namorar em segredo.
Os dramas caseiros refletem o abismo temporal em que se perdem as ideias e ideais da juventude do cineasta: sim, o comunismo existia na Itália, era até um dos grandes partidos, e refratário à URSS. Sim, faziam-se filmes em que a violência existia, mas sem se confundir com a barbárie gratuita dos banhos de sangue.
Para o cineasta, o mundo perde substância. Transforma-se, mas ele, fiel a seu passado, torna-se um animal estranho, não raro intratável. Mas não raro aberto ao humor involuntário das reuniões de produção contemporâneas.
Não as reuniões mencionadas no início, mas outras. Aquelas com produtores que poderiam salvar o filme, caso Giovanni aceitasse seus preceitos. Em matéria de mau-bom-humor esta é provavelmente a melhor sequência do filme (ao menos para quem conhece os métodos de trabalho da Netflix).
Lá está o diretor argumentando em defesa de seu filme para pessoas que repetem automaticamente os preceitos da companhia: o espectador decide o que ver nos primeiros dois minutos de filme; qual deve ser o momento da primeira virada (ou seja: mudança decisiva na ação); qual é o arco narrativo; seu filme não tem clímax, falamos para 190 países (pois Netflix penetra em 190 países, alguém não cessa de esclarecer).
Em suma, a produção está a perigo. Entre outras porque a mulher de Giovanni resolveu mesmo deixá-lo, depois que ele arruína o último dia de filmagem de um outro filme com seus achaques (mau-bom-humor). O mais urgente, no entanto, é outra coisa: o circo húngaro contratado para o filme já não tem nem como alimentar os seus animais (e são 50 kg de carne por dia).
Talvez ainda exista uma salvação para o filme; ela vem da Ásia (de onde costumam vir boas coisas para o cinema nas últimas décadas), onde alguém parece entender perfeitamente o pensamento do cineasta. Não se trata apenas de terminar um filme; trata-se de questionar o mundo em que o cineasta vive hoje: o do fim do comunismo (ou seja, da política), do cinema, da moral.
Se esse é o mundo que morreu, Moretti o exuma em grande estilo, montando pedaços dele e de si mesmo —suas idiossincrasias, mas também os motivos profundos que constroem sua notável narrativa. O sol do amanhã, título original do filme, é uma proposta de resistência, concorde-se ou não com ele. Já sua interpretação brasileira, “O Melhor Está por Vir”, parece um equívoco: a ideia de Nanni Moretti é de que vivemos uma crise política, estética e moral profunda, e que muito provavelmente o melhor já passou.
Daí a impressão que nos toma com frequência de estar diante um objeto estranho, frente ao qual fazemos a pergunta que a moça de Netflix não identifica no filme de Giovanni: “what the fuck”, ou: “que porra é essa?”, como ensina o Google tradutor.
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Fonte: Uol